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[Mais amor, por favor!] Em setembro, Salvador terá primeira mulher transexual como psicóloga

Mais amor, por favor

Com o perdão do clichê, a história de Ariane Senna, mulher trans de 24 anos, rende um filme clássico de histórias de superação. Moradora do bairro de Pernambués, em Salvador, já passou por explorações na rua, abandonos familiares e até mesmo teve que se prostituir para sobreviver. Hoje, pelo ativismo social e de gênero aliado à   força de vontade para estudar, está concluindo o curso de Psicologia e, em setembro, será a primeira mulher trans de Salvador a se formar psicóloga.

O sofrimento na vida de Ariane começou mesmo antes dela nascer. Sua mãe foi vítima de violência física do marido quando estava grávida dela. A mãe de Ariane teve que, mesmo grávida, viver nas ruas. A história traz tristeza e sofrimento para a jovem que atualmente é coordenadora da Associação de Travestis e Transexuais em ação (ATRação) e conselheira de ética da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

Ariane Sena é moradora de Pernambués Foto: Sergio Figueiredo

Ariane Sena é moradora de Pernambués
Foto: Sergio Figueiredo

Hoje me sinto bem melhor pois sinto que consegui superar, antes quando apenas pensava nisso chorava. É triste saber que a pessoa vem ao mundo de forma indesejada, e chegar ao mundo sem um lar e uma família foi algo mais embaraçoso que pôde me acontecer, mas, hoje entendo que a minha mãe vale por dois, apesar de meu pai ter me registrado, ela é o meu pai e minha mãe, conta.

Entre idas e vindas, Ariane conviveu parte da sua infância e adolescência com os avós onde tinha embates pesados em função da sua orientação sexual e identidade de gênero enquanto transexual.  Durante a infância também não foi nada fácil, nem sei caracterizar se foi pior ou melhor pois até os 5 anos de idade vivi morando de favor e em outros períodos com babás quando minha mãe ia vender salgados na praia para me sustentar. Ao completar os 5 anos, eu fiquei com desnutrição em que o quadro caracterizava estado de vida ou morte e os meus avós maternos com pena da situação resolveram me aceitar. Mas, lá encontravam várias barreiras também pois tinha que me adequar a um novo espaço que já havia um outro filho de minha mãe (irmão materno) que havia sido aceito por todos e tudo que chegava a família para crianças era para ele pois embora minha vó educasse a todos que tudo deveria ser repartido, ele ficava sempre com tudo e a mim só restava os restos, agressões físicas e castigos quando ainda lutava e chorava para ter também para mim as coisas, lamenta.

Ariane ressalta que ser uma pessoa transexual provoca preconceitos ainda maiores. Hoje a família foi crescendo, os meus tios foram se casando e foram aparecendo vários homossexuais que para eles parece ser mais fácil de aceitar pois todos eles convivem com eles e convidam para festas e tudo mais mas, quando se trata de transexuais o assunto é mais repugnante, começa a aparecer os dogmas religiosos de um, os pensamentos estigmatizantes de outros e a resistência de todos em ao menos me convidar para uma “ceia de natal” o que caracteriza a principal reunião de família durante todos os anos lá em casa, comenta.

À medida que foi crescendo e a feminilidade foi ficando mais evidente, através do comportamento e usos de roupas a adereços , Ariane relembra que houve grande resistência e agressões pelos parentes o que a levou para as ruas e tendo que se prostituir. Fui expulsa várias vezes de casa e em tempos em tempos tinha que morar na rua recorrendo a prostituição para me manter. Até que chegou os 18 anos em que sofri a última agressão do meu irmão. Já não aguentava mais tanto apanhar dar queixa em delegacia e não dar em nada, que sai e não voltei mais. Hoje, meus avós morreram e esse irmão não aceita mais que eu retorne e conviver nesta casa  –  herdada dos meus avós -  e a família inteira não está nem aí para isso, o que na verdade me deixou e deixa vulnerável a vários tipos de violência até hoje, destaca Ariane.

Nas ruas
Na sobrevivência nas ruas, Ariane relata que ser uma mulher trans aumentava as vulnerabilidades. A minha sorte e meu maior tesouro é a minha mãe que sempre esteve do meu lado e quando saia de casa ela saia para conviver comigo pois sempre fomos mais apegadas do que a reação dela com o outro irmão. Assim, ia me prostituir a noite, retornava pela manhã para casa e a tarde ia continuar os meus estudos (na época ensino médio), diz.

Na prostituição, ela também não encontrava nenhum ambiente acolhedor ou compensável, o que lhe estimulou a virar o jogo da sua vida mesmo tendo que se submeter  a se vestir com roupas ditas masculinas para ser aceita no mercado de trabalho. Eu passava por estupros, atropelamentos, agressões físicas e verbais de clientes e de outras travestis por competitividade do espaço da rua. Então, logo comecei a procurar empregos no mercado de trabalho formal onde partia para mais um caminho de frustração pois quando percebiam que eu não era nem o homem e nem a mulher que eles esperam para determinada vaga, mandavam eu retornar para casa e aguardar ligação de retorno para próximas etapas, ligações essas que jamais recebia. Percebendo isso, passei a comparecer as entrevistas vestida de homem e começava a ser contratada e ter as minhas primeiras e tão sonhadas experiências de carteira assinada mas isso nunca durava por muito tempo pois não aguentava me esconder nas vestes masculinas por muito tempo, relembra-se.

Preconceitos
Ariane carrega sua trajetória de vida muitos preconceitos em função da sua identidade de gênero.  Dentro da escola lembro que fui agredida por 3 meninos que me prenderam dentro da cabine do banheiro masculino e diziam : você não quer ser mulherzinha então tome. Fui agredida com a tampa da privada e socos. Dentro da faculdade, o meu caminho era ouvidoria onde ia registrar as ocorrências das agressões que faziam contra mim como jogar bolinhas de papéis quando passava pelo corredor acompanhadas de piadinhas, abaixo assinado por mulheres para que eu não pudesse utilizar o banheiro feminino e na própria sala de aula convivendo com os colegas estudantes de psicologia onde sou e era excluída de várias atividades e espaços sem ter motivos.

Ariane e Anderson estão juntos há sete anos Foto: Sérgio Figueiredo

Ariane e Anderson estão juntos há sete anos
Foto: Sérgio Figueiredo

Ariane, que se formará pela União Metropolitana de Educação e Cultura (Unime), é casada há 7 anos com o preparador físico Anderson Barbosa. Estamos juntos durante todo esse tempo mas viver em relacionamento também não é nada fácil, principalmente quando se trata de um relacionamento com uma mulher trans. Somos muito assediados quando estamos juntos, ouvimos muitas piadinhas inclusive agressões físicas mesmo estando juntos. Sentimos muito com o preconceito, a inveja, e a resistência de uma sociedade que nos desmoraliza muito enquanto casal, explica Ariane que, esse ano, ao lado de marido e de outro casal formado por outra mulher trans vão estrelar a campanha da Parada LGBT da Bahia.

Futuro
Essa semana, Ariene fez as fotos do convite da sua formatura, que acontecerá em setembro. Já há outras trans psicólogas no Brasil,  mas serei a primeira de Salvador. Isso me dá esperanças de que é possível vencer os meus obstáculos ainda quando as coisas parecem impossíveis. Os meus objetivos e sonhos agora são ter uma estabilidade financeira com a minha profissão para que eu não precise recorrer mais a prostituição para me manter, ter a minha casa própria, ter filhos e dentro da psicologia clinicar, me aperfeiçoar ainda mais com especializações e outros títulos para ajudar as travestis e transexuais, planeja Ariane que quer fazer mestrado para ser professora e ajudar a combater os preconceitos. O preconceito é a fata de informação. Precisamos de educação. É ela que pode salvar a humanidade, acredita.

 

Jorge Gauthier
Jorge Gauthier
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação! mesalte@redebahahia.com.br

1 Comentário

  1. Emanuelle disse:

    Parabéns Ariane! Sucesso e boa sorte para você.

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