A alma boa que habita o senhor M.

por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de dezembro de 2017 às 08:33

- Atualizado há um ano

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O jornalista e escritor Rogério Menezes não acorda alegre, nem triste, nem poeta nesse domingo, 15 de outubro de 2017. Acorda. Ponto. Levanta-se em slow motion. Vai ao banheiro. Faz xixi. Lava mãos com  sabonete e fúria. Puxa da arcada dentária superior  placa de silicone com a qual tenta amenizar o bruxismo. Limpa-a com zelo. Guarda-a em caixa de plástico azul. Em seguida escancara a janela da sala na esperança de que novos e buenos ares o invadam. [Ao recuar, para se chafurdar no mundo virtual do notebook cinza-cobre doado por paulistano boa-praça, vê gato morto no outro lado da rua]. O cérebro do sr. Rogério Menezes demora a pegar de manhãzinha e titubeia sobre o que fazer – ignorar o corpo ou retirá-lo do lugar no qual jaz para que não seja estraçalhado por automóvel? Detalhe, a rua está deserta – no palco apenas o sr. Menezes e o gato inerte. O sr. Menezes segue até a pequena lavanderia – o que lhe permite vigiar o corpo do gato através da parede de cobogós. Mexe a água ensaboada do balde na qual duas cuecas samba-canção estão de molho desde a noite anterior. [Escuta barulho de carro e fecha os olhos]. [O gato não é esmagado, e o susto o faz agir com celeridade. Na cozinha pega saco plástico GG, que embalara ventilador-comprado-nas-lojas-Le-Biscuit,   pá e vassoura de piaçava. Atravessa a rua com traje algo rústico:  moletom cinza-encardido com pequena mancha de merda à altura da bunda +  camiseta azul com manchas de pasta de dentes + meias pretas + crocs dois números maior que o pé]. O bichano já está em rigidez cadavérica. O rabo enfia-se de maneira tão firme entre as patas que não dá para perceber se havia morrido gato ou gata. Nenhum ferimento ou sangramento – morte deve ter ocorrido por envenenamento, deduz o sr. Menezes. No momento em que o sr. Menezes enfia o gato no saco, a janela da casa em frente se abre e dona Norma, recém-saída da tumba de algum pesadelo, grunhe – ‘Mataro o bichin, seu Rogero?  Pobrezin!’ Refeito do susto, pergunta-lhe:  – Era da senhora?  Ela nega. O sr. Menezes segura o falecido com a mão direita – a esquerda se divide entre a pá e a vassoura de piaçava  –  e se arrasta em direção a contêiner a 200 metros de distância. Dona Norma, com a voz de taquara rachada que lhe é peculiar, diz:  – ‘O sinhô é bão. Deus lhiguarde e lhiproteja, seu Rogero!’  O sr. Menezes responde amém com fé. [Sepultamento efetuado com sucesso, volta para casa. Toma banho gelado. Limpa cada poro como se fosse o último. Escova dentes com afinco. Enxuga-se. Alonga-se. Deita-se sem roupa no chão do quarto entre dois jarros com flores artificiais. Liga o ventilador. Deseja-se santo domingo, mas – merda! – domingos nunca são santos]. [O sr. Rogério Menezes pensou em escrever COLUNA VERTEBRAL sobre esse evento logo no domingo seguinte. Mas outros plots foram pipocando. Apenas ontem à noite, 18 de dezembro, ao avistar guirlandas de pisca-piscas, supercafonas, na janela de dona Norma, teve a ideia de escrever este texto à guisa de desnatado auto de natal].