A cinquentã carente e a rainha de bateria do Salgueiro

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 3 de dezembro de 2017 às 02:49

- Atualizado há um ano

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O apartamento quarto-e-sala número 21 onde mora na Rua Jurupari, na Tijuca, Rio, é a menina dos olhos de Carmem, 53. Herdado dos pais, cuida do lugar como se fosse templo. Nada está fora de ordem. Nenhuma sujeira macula o chão de retangulares tacos marrons. O banheiro sempre cheira a flores do campo. A cozinha é um brinco.

Circula nesse lugar como se circulasse n’alguma capela-de-nossa-senhora-de-fátima, de quem é devota. [Olfato superapurado, só fica feliz quando capta e abafa, vaporizadores perfumados em punho, qualquer mau odor vindo de onde vier, chegue de onde chegar].

Apesar de loira  sempre cobiçada,  Carmem nunca casou. Nem teve filhos. Mas houve homem na vida dela sim. Em certa tarde de sábado deste ano no Amarelinho, na Cinelândia, me contou depois de meio copo de chope:  - Bastou o Nelson. Foi como se bonde me passasse por cima, eu me estropiei toda.

É gerente de loja que customiza camisetas com imagens de santos no Saara, centro do Rio. Das colegas de trabalho sempre escuta: - Arrume companheiro. A solidão apavora.  Carmem responde, enfática:  - Amar é sofrer. Sou feliz assim.

No começo de outubro, toque-toque inesperado no teto da pequena sala mudou a rotina de Carmem. Obrigou-se, várias vezes, a interromper a leitura dos romances açucarados   comprados em sebo na Rua Buenos Aires. No apartamento de cima, alguém sambava como se desfilasse na Marquês de Sapucaí a bordo de saltos altíssimos. Todo dia, no exato momento em que Carmem se concentrava na leitura do romance açucarado da vez e ouvia baixinho Pixinguinha tocar – o pai trabalhara como alfaiate do menestrel –, o baticum do apartamento de cima, o 31, recomeçava. Aos poucos, o trotar da sambista passou a lhe incomodar menos, e inesperado comichão começou a lhe formigar o baixo ventre. 

Também percebeu, perplexa:  1. A vagina se umedecia. 2. Orgasmos escapavam-lhe, suaves. 3. Ato contínuo, passara a morder os lábios a ponto de sangrá-los. [Sem se dar conta, passava a largar o livro romântico de lado, aumentava o volume de ‘Carinhoso’, e deixava fluir].

De manhãzinha, antes de ir trabalhar, Carmem se queixou ao porteiro Ananias: - A mulher fica   sambando de salto alto sobre a minha cabeça. Não consigo ter paz. O homem boquiabriu-se: - Mas o apartamento do terceiro andar está sem inquilino.

A inquilina  do apartamento 31 – mulata inzoneira rainha de bateria do Salgueiro em tempos de glória e esplendor – morreu em dezembro de 2016. Véspera de Natal, ao atravessar a  Rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, ônibus a atropelou. Abismada, Carmem resmungou: - Jura, seu Ananias? – Juro pela luz que me alumia, respondeu-lhe o porteiro.

O silêncio imperioso do apartamento 31 nas noites seguintes fez Carmem capitular. O formigar-lhe no baixo ventre ressurgiu.  Eram 4 da manhã de anteontem. Foi até a diminuta varanda, lançou ao vento a camisola de seda vermelha, e gritou para toda a Rua Jurupari ouvir:  - Volta rainha de bateria do Salgueiro, volta!