A vida é móbile feito pluma ao vento

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 17 de dezembro de 2017 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A voz rouca, louisarmstronguiana, rascante, épica,  imperial, rasga a serrote o céu da boca da noite. Faz chamamento arrebatador. Remete a cantochão barroco que nos convoca – sem direito a deserção – para embarcarmos no último trem que nos levará para muito além do arco-íris: - Moradô! Moradô! [A primeira vez que ouvi esse simulacro de Louis Armstrong tonitruando moradô-moradô, eu preparava o café-com-pão da noite. A fumaça cheirosa que saía do bule no qual a bebida fervia me abduzia a ponto de eu e a fumaça cheirosa do café formarmos casal diáfano a flutuar feito fogos-fátuos na pequena cozinha. Inebriado,  demorei a escutar grito tonitruante de moradô-moradô].

Agora ouço tudo em surround. É impossível não escutar o grito chamador de moradô-moradô. Deixo-me levar. Abandono o café – jogo o bule já amornando sobre a pia – visto camiseta e bermuda surradas – enfio par de havaianas, mas esqueço o boné e meus cabelos longos se assanharão sem rota definida sob o vento da rua – e sigo para onde o simulacro de Louis Armstrong grita moradô-moradô.

Abro a porta de casa. Desço os 20 degraus da escada sem luz tateando as paredes. Chego ao portão do prédio e vislumbro a rua prateada. Não é apenas um homem, são vários. Negros e guapos feito Louis Armstrong, porém mais esguios. Vestem macacões, luvas, botas e chapéus vermelhos. Gritam moradô-moradô – ao mesmo tempo que correm de lá para cá e carregam sacos de lixo que humanoides deixam, apressados, nas portas dos bunkers com janelas e portas gradeadas de ferro nos quais habitam.

Nem assim a narrativa urdida no meu cérebro se descontrói – eu sou o moradô-moradô que aqueles simulacros de louises-armstrongs convocam – e eu fantasio: depois que embarcar naquele caminhão mal-ajambrado e malcheiroso, eu ouvirei a melhor música do mundo – Chet Baker, Miles Davis, Alberta Hunter, Nina Simone, Anita O’Day, João Gilberto e tudo o que jazzerá sobre a terra – para todo o sempre.

Então quando o caminhão mal-ajambrado dá sinal de partida, eu abordo o simulacro de louis armstrong + próximo, e falo: -  Estou pronto para partir para além do arco-íris e jazzer para sempre.

O lixeiro louisarmstronguiano + próximo me olha com cara de espanto, e dispara: - Vassifudê véimaluco! [Massacrado, reduzo-me a velho e murcho escaravelho. Rastejo e me escondo em monte de escombros de material de construção. Ali me escondo e me deixo transir].

[Durante lenta metamorfose, cantarolei esta canção imortal  do cumpade Batatinha: - Todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu, como pagar ingresso se eu não tenho nada, fico de fora, escutando a gargalhada, a minha vida é um circo, sou acrobata na raça, só não posso é ser palhaço, porque eu vivo sem graça.’]

[Enfim, a redenção. Renascido, agora sou pombo gordo (rsrs) que sobrevoa a Piaza San Marco, Veneza. Em troca de gororobas suculentas canto a inolvidável Stupidi, que a santa Ornela Vanoni imortalizou, e os turistas aplaudem em frenesi]. [Viver é dom] [Viver é muito bom].