A vida por um rim: conheça a história de Silvio que por 17 anos lutou por um transplante de rim

Na sua cruzada pela vida, Silvio fez 2.905 seções de hemodiálise e chegou a rejeitar órgãos compatíveis

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 24 de setembro de 2017 às 08:03

- Atualizado há um ano

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Um total de 17 anos e 27 dias de luta resumidos em 18 minutos e 45 segundos. O depoimento que o autônomo Silvio Roberto das Virgens Pereira, 55 anos, deu ao CORREIO, é uma lição de força, fé, vontade de viver e solidariedade. Sua cruzada pela vida é tão marcante que ele se lembra de tudo. Ele tem todas as datas, dias e até horários na cabeça. 

Veja abaixo o relato de Sílvio:

A primeira internação foi no dia 6 de julho de 1999, uma segunda-feira. No dia 12 de julho, fiz minha primeira hemodiálise, outra segunda-feira”. Mas o relato de Silvio começa um pouco antes, quando perdeu duas irmãs para a mesma doença que o acometeria. “Doença de família. A gente nem sabia o nome. Eu não sei o nome até hoje”, conta. Durante os anos de tratamento com diálise, ainda enfrentou o câncer da esposa.

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Nessa época, chegou a rejeitar rins que lhe foram oferecidos como compatíveis. “Optei por cuidar dela”. Com a morte da mulher, focou no tratamento e na criação dos três filhos. Teve saúde suficiente para esperar até o dia 31 de julho do ano passado, um domingo, quando ganhou uma nova vida. “No dia 4 de agosto de 2016, uma quinta-feira, comecei a urinar novamente”. Conheça, do primeiro ao último dia, o relato de uma vida que esteve por um rim:

“Sou portador de uma doença renal. A Minha doença foi diagnosticada quando eu tinha 4 anos. Na verdade tenho uma doença familiar, uma doença herdada da minha mãe. Minha mãe pariu nove filhos, sendo que três vieram com a doença. A minha irmã mais velha morreu em 1965 com 16 anos. A minha outra irmã faleceu em 1980, com 28 anos.

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Nunca quis me cuidar. Sempre tive medo da hemodiálise. Não queria aceitar a doença. Um amigo me levou para o Hospital das Clínicas, mas eu me recusava a fazer o tratamento. Um médico disse que eu ia morrer na rua. Tinha a pressão alta, o potássio alto, a creatinina muito alta. Eu insistia que eu não sentia nada. Ele respondeu que isso era pior ainda. ‘Você é uma bomba relógio’, disse na minha cara.

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Quando eu tinha 36 anos, a doença começou a manifestar em mim. Mas eu não ligava os sintomas a ela. No início de 1999, sentia muito cansaço, ficava inchado, com dificuldade de andar pelo cansaço. Eu achava que eu era cardíaco porque era o coração que disparava quando vinha a sensação. Em junho daquele ano as coisas começaram a se agravar. Foto: Acervo Pessoal ***

Sou de Salvador, mas morava em Valença. Na manhã do dia 1º de julho, véspera do batizado da minha filha, amanheci vomitando. Fiquei cinco dias indo em vários médicos em Valença. Nenhum acreditava que eu tinha doença renal. Na tarde do dia 5 de junho fui a um gastro. Ele disse: ‘O senhor vai morrer. Seu rim parou de funcionar e você precisa voltar para Salvador urgente. Eu não queria ir:

Foi quando ele me disse: ‘Se o senhor não for, eu vou lhe internar e vou lhe colocar em uma ambulância. O senhor vai morrer!’. Caí na real ali. Vim embora. Não fui para o batizado de minha filha e saí de Valença na madrugada do dia 6. Uma ambulância me levou à emergência do Hospital São Rafael. Ali começou minha a luta. Minha situação era tão crítica que, segundo eu soube depois, eles disseram que eu morreria ali mesmo. Tive alta em 11 dias. Foi surpreendente.

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A partir dali, caí na hemodiálise. Minha primeira hemodiálise foi no dia 12 de julho de 1999. Segundo diz a lei, 90 dias após o início da hemodiálise, eu estava inscrito na lista de transplante. Quando iniciei a diálise meu filho mais velho ia fazer 10 anos, a do meio 8 anos e a mais nova 5 anos. A hemodiálise me deu qualidade de vida. Continuei trabalhando, criei meus filhos. Eu não queria nem ouvir falar em diálise. Me tornei o maior defensor dela.

Deus, talvez sabendo que eu poderia carregar uma cruz ainda mais pesada, nos deu outra provação. Em setembro de 2003, minha esposa foi diagnosticada com câncer. Eu já tinha quatro anos de hemodiálise. Um cuidava do outro. Minha médica dizia que um escorava no outro. Mas, até então, o câncer tava controlado. Em 2007, a doença voltou mais forte. com metástase nos ossos e no pulmão. O tumor era muito agressivo. Foto: Acervo Pessoal ***

Nesse período, fui chamado algumas vezes para transplantar. Surgiram rins compatíveis. Mas eu neguei. Não queria nem fazer os exames. Optei por cuidar de minha mulher. Toda vez que me chamava em negava. Nem ia no hospital. ‘Não tenho interesse não’, eu dizia. Em 2014, ela infelizmente faleceu. Em 2015, voltei pra fila. No início de 2016 iniciei um tratamento dentário, que me impedia de fazer o transplante. No dia 3 de junho terminei o tratamento.

No dia 29 de julho de 2016, Uma sexta-feira, fui comunicado de um possível transplante. No dia seguinte, dialisei e me mandaram ir para casa. Imaginei que não seria eu o contemplado. Quando saí do hospital perguntei à médica: ‘Posso almoçar?’. Ela disse que eu podia comer uma coisinha leve. Cheguei em casa, tirei um cochilo e, ao acordar, perguntei ao meu filho se alguém tinha ligado. ‘Ninguém ligou, meu pai’.

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Escovei os dentes e, às 19h, liguei para o hospital. A enfermeira atendeu. Nada. Às 20h, liguei de novo. Nada. Às 21h. Nada. Neste dia eu era o 16º da lista do estado. A escolha é feita através de dois exames. Dos 16, apenas três foram escolhidos como possíveis receptores. Os dois na minha frente. Um deles, que estava no Hospital Ana Nery, aceitou. Ainda restava um rim.

Liguei para minha médica. Perguntei se podia tomar café. Ela disse: ‘Tome. Se tiver a cirurgia será amanhã de manhã’. Até porque tinha uma pessoa na minha frente. Mas a equipe desistiu. O rim já estava no gelo há muito tempo e eles imaginaram que não daria certo. Quando eu tô colocando um pedaço de pão na boca, o celular toca. Mas eu não percebi. Minha filha disse: ‘Meu pai, o celular tá tocando. Era a doutora. Ela mandou eu botar o pão para fora. Mas eu já tinha comido. ‘Poxa, o rim é pra você’.

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Por causa do pão, eles preferiram fazer a cirurgia na manhã seguinte. Podia ocorrer uma broncoaspiracao desse pedacinho de pão e eu podia morrer. Ou seja, aumentou ainda mais o tempo de isquemia, quando o órgão fica no gelo. Mas eu confiava muito em Deus e na minha médica. Ela disse que daria certo porque o rim era de um jovem de 23 anos, saudável. Fui sem medo. Deu tudo certo. Fiz meu transplante na manhã do dia 31 de julho de 2016.

Mas, devido o tempo de isquemia, o rim ainda não funcionava. Na madrugada do dia 31 para o dia 1º, fiz duas horas de diálise. No início da tarde do dia 1º de agosto, fiz três hora e meia. No dia 2 de agosto fiz cinco horas de diálise. No dia 3 de agosto, mais quatro horas na máquina. Na quinta-feira à noite, dia 4 de agosto, comecei a urinar. Olhei a sonda e a bolsa estava cheia. Meu novo rim estava funcionando. Foi uma emoção maravilhosa. Hoje faço tudo. Vou a shows e vou ver meu Vitória no Barradão. Agradeço à família do doador e agradeço até à minha doença, que me transformou em um novo ser humano”.