A volta do entrudo

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 16 de fevereiro de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

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Esqueça o título, me expressei mal. A verdade é que o entrudo nunca saiu do Carnaval da Bahia e, pelo que vimos esta semana nas ruas, está mais presente do que nunca, talvez devamos reconsiderar a palavra Carnaval e voltar a chamar a festa de entrudo como no passado tão remoto que muitos dos leitores estarão aqui a se perguntar o que é esse troço? Explico. Durante séculos, os baianos brincaram o Carnaval se molhando uns aos outros. A brincadeira consistia em jogar bolas de cera contendo água perfumada, chamadas de limões, ou laranjinhas, a depender da cor, contra o corpo da pessoa. As bolas explodiam e molhavam. Quem não tinha recursos para fabricar ou adquirir o produto se virava com seringas gigantes e bisnagas e até tripas de porco preenchidas com água.

O entrudo era uma brincadeira quase saudável que foi estigmatizada pela imprensa em função de alguns episódios isolados que repercutiam negativamente, o caso da substituição de água perfumada por urina ou os casos de pessoas nobres, digamos assim, entrudadas na rua sem o seu consentimento. Charles Darwin na sua visita à Bahia em 1833 chegou a sugerir que se entrudado na rua seria o máximo da humilhação, por considerar a brincadeira um hábito bárbaro, indigno da civilização. Descreveu o ato, no seu diário, como “um fuzilamento”. O entrudo foi proibido em 1831 e daí por diante sempre coibido através de portarias da repartição da polícia, nunca respeitadas, obviamente.

Foi para acabar o entrudo que o governo planejou, decretou e regulou a forma de brincar na rua, através de blocos organizados e coretos nos bairros para apresentação de grupos musicais. Era o ano de 1884, marco oficial do Carnaval, sete blocos desfilaram. A contrapartida era a erradicação definitiva do entrudo. Hoje, 134 anos após, o entrudo continua, tão presente quanto no passado, sempre presente. Mudou de nome e de formato. Hoje o entrudo é caracterizado nos jatos de alfazema que os filhos de Ghandy espirram nos foliões, nas pistolas de plástico que jorram água e em especial nos sprays de espuma, milhares deles vendidos por camelôs em cada canto, em cada esquina do circuito. Como no século XIX,  o folião recebe hoje jatos na cara, no cabelo, nas vestes. Sorria! Entrudo nunca foi diferente.

Retomando o fio da história, um dia os limões e laranjinhas de cera desapareceram do circuito para dar lugar as bolinhas de gesso chamadas confetes, importadas da França, que explodiam na cara e causavam desconforto e ardor nos olhos, a depender da pontaria. Os confetes de gesso foram substituídos pelos de açúcar cristalizado e já no século XX eram de papel picado, os mesmos da atualidade. As batalhas de confetes, assim como as de flores, eram entrudo na sua essência e simbolismo. Então conhecemos o lança-perfume tão identificado com o espírito do entrudo que a embalagem do líquido era uma bisnaga. Entrudava-se o folião através de um jato no pescoço e claro, os mal-educados, direcionavam-no aos olhos dos outros.

Paralelo ao modismo do lança-perfume desenvolvemos outras formas de entrudo: jogar maizena ou farinha de trigo na cabeça, ou direto no rosto, e a tão temida meleira dos blocos de sujos: sujeitos que se pintavam de graxa, da cabeça aos pés, e encostavam nas pessoas, de leve, mas, nem tanto, com o único objetivo de sujá-las. Desenvolvemos ao longo do tempo muitas outras formas de entrudo que, felizmente, não vingaram. Outras virão que não conhecemos ainda, tomara que menos invasivas e preservando aquilo que permitiu até hoje a sua sobrevivência: a consciência de que tudo não passa de uma brincadeira. Carnaval é entrudo e não há o que fazer.