Após 93 anos, peças sagradas para o candomblé são identificadas e catalogadas

Foram perdidas durante batidas policiais no candomblé do 'curandeiro' Antônio Osùmàrè, em 1922

Publicado em 24 de janeiro de 2016 às 13:40

- Atualizado há um ano

Graça Teixeira, coordenadora do Mafro(Foto: Marina Silva/Correio)Noite de 3 de outubro de 1922. O delegado da 1ª Delegacia de Salvador cerca o candomblé do “curandeiro” Antônio Osùmàrè, que funcionava no Engenho Velho da Mata Escura – hoje, Casa de Oxumarê, na Federação – e prende 15 pessoas. Os “apetrechos bellicos”, como foram chamadas as peças do culto do terreiro de candomblé, também foram levados para a 1ª Delegacia, que ficava em Ondina.De acordo com o Babá Egbé Leandro, da Casa de Oxumarê, aquela foi apenas uma das mais de 50 batidas sofridas. “O terreiro sofreu muito, teve uma perda considerável da sua memória por conta da pressão policial”, afirma. Uma das peças levadas foi o objeto central do culto, a Coroa de Bàyání. Noventa e três anos se passaram desde aquela batida e é possível que as peças apreendidas naquela segunda-feira no Ilé Osùmàrè Aràká Àse Ògòdó tenham se perdido ou sido destruídas. Mas algumas delas podem fazer parte de uma coleção de cerca de 200 peças que sobreviveram e estão sendo conservadas e catalogadas pelo Museu Afro-Brasileiro (Mafro/Ufba). A Coroa de Bàyání, segundo a coordenadora do Mafro, Graça Teixeira, não foi para lá.A identificação e a origem das mesmas peças são objeto de pesquisa do museólogo Marcelo Bernardo da Cunha, que já foi coordenador do Mafro. Ele estuda o contexto histórico e de exposição das peças e busca diferenciar as ritualísticas das decorativas. Entre elas, há figas, bonecas, colares, atabaques, estatuetas,  assentamentos — estes,  certamente tirados em batidas policiais.Cenas como aquela se repetiram incontáveis por décadas,  capitaneadas pela Delegacia de Jogos e Costumes. Por anos, as peças foram levadas para espaços como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e o Museu Estácio de Lima, no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues.Desde 2007, o Brasil celebra no dia 21 de janeiro o Dia de Combate às Intolerâncias Religiosas. Foi neste dia, no ano 2000, que a ialorixá Mãe Gilda de Ogum, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador, morreu em decorrência das agressões  ocasionadas pela intolerância religiosa. MostraSob a guarda do Mafro desde 2010, as peças agora vão compor um catálogo e, se a vontade dos pesquisadores virar realidade, serão expostas em contexto próprio – a coleção ainda não está acessível ao público. Isso porque o Mafro, que detém as peças até 2020, tem espaço para expô-las, mas falta orçamento.Foto: Existem mais de 15 figas na coleção (Foto: Marina Silva/Correio)O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) disse ter interesse na exposição. No entanto, ainda não foi procurado pela Ufba para uma possível parceria. Foi a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), que intermediou a ida das peças para o Mafro. Ainda segundo a Sepromi, o desejo é poder devolver as peças aos terreiros de origem. Em caso de impossibilidade, a melhor alternativa é expô-las. Outras peças vindas de terreiros de candomblé já estão expostas: há máscaras e estatuetas no IGHB.De acordo com o antropólogo Renato da Silveira, algumas das peças vieram da África. Boa parte delas foi retirada dos terreiros durante batidas policiais no século passado. Conforme o museólogo Marcelo Bernardo da Cunha, que pesquisa a origem e o significado das peças, atabaques eram muito apreendidos. “Uma das sustentações da polícia para a perseguição era a perturbação da ordem pública. O atabaque era a prova cabal de que eles estavam fazendo barulho”, diz o museólogo. A grande dificuldade é, hoje, quase um século depois de algumas das invasões, saber de onde cada peça veio. Em 2010, quando as peças chegaram ao Mafro, o Tata Anselmo, do Terreiro Mokambo, a pesquisadora Ieda Machado e a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, do Ilê Axé Opó Afonjá, avaliaram as peças e concluíram que não era possível identificar a origem. Pelo menos não tanto tempo depois.HistóriaNo final de outubro, uma das peças apreendidas pela polícia, a cadeira que pertenceu ao sacerdote Severiano Manuel de Abreu, o Jubiabá, do Terreiro Mokambo, foi devolvida aos seus ancestrais diretos. A cadeira passou 95 anos IGHB.O nome de Jubiabá, entalhado na própria cadeira, foi fundamental para a identificação do terreiro de origem. “Na intenção de achincalhar, colocaram fotos em todos os jornais. Era impossível dizer que não era a cadeira de Jubiabá”, afirma  Tata Anselmo,  sacerdote do Mokambo. (Foto: Marina Silva/Correio)“Se passaram 95 anos. Hoje, elas são históricas, mas naquela época aquelas peças não tinham esse valor. A não ser que se faça uma pesquisa nos jornais ou que a pessoa chegue e diga: ‘isso é da minha casa’”, diz a sacerdote.Mas nem com o passar dos anos, as peças tiveram o devido respeito e cuidado. No Mafro há uma maraca em pedaços. “É um instrumento de afirmação, para mostrar o que o descaso faz”, diz a coordenadora Graça Teixeira.Para o antropólogo Renato da Silveira, as peças são um documento da perseguição religiosa. “A primeira coisa que a gente tem que ressaltar é o interesse oficial em guardar essas peças como uma espécie de documento à história do Brasil, ainda que um documento triste”, diz.Peças foram expostas em contexto de preconceitoPor anos, objetos de culto do candomblé fizeram parte do acervo do Museu Estácio de Lima, do Departamento de Polícia Técnica (DPT), dedicado à Medicina Legal, Antropologia, cultura e Etnologia.As peças de candomblé, assim como um acervo de Cangaço, foram expostas em meio a corpos dissecados, armas, máquinas de falsificação, anomalias genéticas.Após uma luta do povo de santo, as peças foram retiradas daquele contexto e, em 2010, levadas para o Mafro. “Foi preciso um movimento para se dar destino digno para aquilo ali. O Estácio de Lima era representante no Brasil do racismo científico do século XIX. A captura desses despojos era depositada naquele museu. O que se espanta é que tenham ficado tanto tempo lá. Isso revela que nossa elite ainda tem a cabeça colonialista”, diz o antropólogo Renato da Silveira.O antropólogo e etnólogo Ordep Serra contesta o caráter de museu do espaço. “Um museu tem que ter uma ficha museográfica. Se não tem, não é museu. Eles sumiram com os documentos. Eu lembro que embaixo das peças tinha escrito o nome do terreiro de onde tinham vindo”. Para ele, o Estado tem uma dívida com todos os cidadãos por conta do contexto em que as peças foram expostas. Procurados pelo CORREIO, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia e o DPT não souberam responder se as peças tinham ou não identificação por terreiro.