As almas que aqui embarcam não embarcam como lá

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 1 de outubro de 2017 às 09:11

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Quando voltei a morar em Jequié-Bahia, há um ano e quatro meses, pesquei, no meio da balbúrdia do Mercado Municipal, o seguinte polissílabo: velatório. Ouvi de novo. Então inquiri meus neurônios. Nenhum me ajudou. Consultei o Aurélio e o Houaiss: sem registro, sem registro.

Poucos dias depois, quando meu irmão fora me pegar para me levar ao velório de querido-amigo-de-infância    – vitimado por ataque cardíaco –, perguntei-lhe: - Será na casa da família ou no cemitério? Ouvi: 

- Será no velatório. [Então a ficha caiu e, também, lembrei: velatorio (sem acento) é velório em espanhol].

Manhã de sábado, 23 de setembro de 2017, desço a Ladeira do Maracujá e sigo até a padaria preferida para comprar pão e café em pó. Sou bem recebido, como sempre, pelos funcionários.  Um deles me indaga:

- O sinhô soube da morte de L.F.?  Murmuro um consternado oh-meu-deus! e respiro fundo [Era amigo recente. Conhecera-o no velório de querido-amigo-de-infância-1, em junho de 2016, e nos tornamos  chapas]. Ao saber que o corpo chegara de Salvador e  estava sendo velado, sigo para o velatório. Mas escuto:

- Melhor se informar. Não sei se está sendo velado no nacional ou no internacional. [Pasmo-me 1: esta cidade não tem apenas um, mas dois velatórios. Fantasiei:  devem ter plataformas de embarque diferentes, uma para o  Brasil, outra para o exterior].

Ando para os lados da Avenida Franz Gedeon. Primeira parada: velatório internacional. Depois de atravessar colossal lamaçal, chovera bastante de madrugada, avanço em meio a pequena multidão de rostos chorosos. Encontro ex-colega de ginásio, e desabafo:  - Que merda, cara. Logo o tão querido L.F.!  Ele reage: 

- Quem está sendo velado aqui não é L.F. L.F. está internado em Salvador. Ele morreu, foi?  Digo que alguém  me confirmou a morte de L.F. e sigo para o velatório nacional, onde, imagino, o corpo de L.F. estará sendo velado.

Ao chegar ao aeroporto, oops, velatório nacional, surpresa: vazio. Pergunto ao funcionário de plantão: - É aqui que L.F. será velado?  Sarará de dentes cor de rosa, esclarece: - Não sei o nome, mas é sujeito que foi esfaqueado em Jitaúna. [Pasmo-me 2: não deve ser L.F., L.F. é homem de paz].

Volto à padaria. O funcionário que me passou a fakenews, constrangido, pede-me desculpas. – Informação errada, ‘seu’ Rogério. Ligaram desmentindo. O sinhô L.F. foi operado e está bem. [Pasmo-me pela terceira vez].

Pego e pago o pão e o pó de café, subo a Ladeira do Maracujá, e, em casa, mergulho em caraminholas: 1. Qual criança peralta ficaria, a bordo de aplicativo  bestial-celestial de última geração, nos pregando  pegadinhas perversas?  2. Meus dois amigos-queridos-de-infância velados – um outro querido-amigo-de-infância também morreu nesta cidade em 2016 – no velatório internacional estarão a esta altura do nonada cercados por doces messalinas, dançando hula hula e bebendo daiquiri em alguma praia do Havaí. [E eu tento rir, e eu tento relaxar, e o sábado escorre lento feito cágado bêbado].