Até 99 anos: conheça os estudantes mais velhinhos da rede municipal de Salvador

Uma delas é dona Norberta, que vai se tornar centenária em dezembro

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  • Thais Borges

Publicado em 15 de outubro de 2017 às 07:46

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO

Numa sala cheia, colegas e professores cantam ‘Parabéns’ para um aluno, com direito a bolo, pãezinhos e refrigerante. Em outra sala, mais vazia, uma estudante concentrada aguarda o começo da aula antes mesmo da chegada da professora. As cenas acontecem ao mesmo tempo, em dois pontos extremos de Salvador – uma em Plataforma, outra na Chapada do Rio Vermelho. Nada distante da rotina de qualquer escola da cidade, se não fosse o fato de que os dois têm 90 e 99 anos, respectivamente. 

A de 99, inclusive, é a aluna mais velha de toda a rede municipal de Salvador: é dona Norberta Pereira de Assis, que, desde o ano passado, frequenta a Educação para Jovens e Adultos (EJA) da Escola Municipal Comunitária Cristo Redentor, na Chapada do Rio Vermelho. A dois meses de se tornar centenária, ela já está ansiosa pela festa de aniversário prometida pelos professores – exatamente como a de seu Valdomiro Pedreira Carlos, o aluno que ganhou a comemoração pelos 90 anos completados na terça-feira (10).  Prestes a completar 100 anos, Dona Norberta diz que está na escola para continuar sua missão (Foto: Betto Jr/CORREIO) “Estudo aqui e em casa para continuar minha missão”, anuncia, durante a visita do CORREIO à escola. Naquela noite, dona Norberta faria uma prova – na verdade, uma ‘atividade avaliativa’, como as professoras preferem chamar, para evitar a pressão que a palavra ‘prova’ costuma provocar nos alunos. Mas qual seria essa missão? “Estudar, claro”, responde, como quem diz que a resposta é óbvia. 

Como dona Norberta, outros 1.242 idosos encaram a ‘missão’ de estudar na rede municipal de Salvador hoje – eles representam 5,7% do total de 21.655 estudantes da EJA. E, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação (Smed), apenas três são maiores de 90 anos. Na rede estadual, são 2.566 (1.255 na EJA e 1.311 no programa Todos pela Alfabetização – Topa). 

“São situações muito variáveis, porque tem os que sabem ler, mas não sabem escrever, tem gente que não enxerga bem, tem gente que está ali por socialização, tem gente que está querendo ler pra ver a Bíblia... Mas a gente tem o material didático e, dependendo da turma, tem mais de um tipo de planejamento porque tem mais grupos na mesma sala”, explica a técnica Adalice Santana, da coordenação da EJA na Smed. 

Quase centenária Dona Norberta ficou conhecida como a aluna mais velha da rede municipal de Salvador no mês passado, bem por acaso. Na época, a diretora do colégio recebeu uma ligação do pessoal da Smed: estavam achando estranho que a escola tivesse uma aluna prestes a fazer 100 anos. Naquele momento, acreditavam que a situação devia ser um erro do sistema. 

Não era. Mas, de fato, o sistema não estava preparado para dona Norberta, quando ela chegou. “A matrícula não aceitava a data que ela nasceu. Então, a diretora precisou colocar outra data só para fazer a matrícula. Depois, ela voltou e mudou para a data certa”, conta a coordenadora pedagógica da EJA na instituição, Paula Shirley Souza. 

Sempre a primeira a chegar, dona Norberta, por vezes, entra na sala antes mesmo da professora. É a mais assídua, entre os alunos. Tem uma mesa diferente: tanto ela quanto outra colega, de 78 anos, assistem as aulas em mesas mais altas, que são como as de professores. Os outros colegas – incluindo uma senhora de 86 anos – sentam nas carteiras que também são usadas pelas crianças, durante o dia. 

Embora seja descrita como ‘observadora’ pelas professoras, a aluna quase centenária não tem dificuldades para se relacionar com os colegas. Na sala do chamado Tempo de Aprendizagem 2 (TAP 2), que tem pouco mais de 20 alunos, há outras duas idosas, mas a maioria dos estudantes não passa dos 40 anos. Talvez nenhum tenha tanta seriedade nos estudos quanto ela. 

“Ela tem essa persistência, essa seriedade. Todos os dias, ela vem com o intuito de aprender e, isso, às vezes, falta em pessoas jovens. Ela vê essa falta de desejo nessa juventude e a gente percebe que ela até censura com o olhar. Mas ela é motivadora para todos”, completa Paula Shirley. 

Mais modesta, dona Norberta diz que a escola veio quando não aguentava mais ficar sozinha em casa. Foi levada até a Cristo Redentor por uma vizinha, que percebeu a situação. “Não sei porque eles (os jovens) não gostam de estudar. Eu sou boa aluna, graças a Deus”, diz ela, antes de declarar o amor pela professora. “Ela me ensina e me ajuda”, explica. 

A professora em questão é Dilma Fátima, que, há quatro anos, ensina na EJA da Escola Municipal Comunitária Cristo Redentor. Dona Norberta já sabia ler, mas não tinha costume. Segundo a professora Dilma, a escola teve que se adaptar à aluna especial. As letras das provas têm um tamanho um pouco maior e sempre há alguém para ajudá-la na escada.  Sempre que dona Norberta chega na escola, alguém vem ajudá-la a descer as escadas (Foto: Betto Jr./CORREIO) “Quando ela chega na altura do poste da rua, o pessoal já corre para acolher. Ninguém é forçado a ajudar, mas todos fazem pelo carinho”. Às vezes, parece até que dona Norberta acha que a preocupação é demais. “Nos preocupamos mais até do que ela própria com vento, chuva. Uma vez, estava chovendo e nós estávamos preocupados. Ela mandou recado dizendo que viria porque não era de açúcar. Pode estar chovendo canivetes que ela vem”. 

Medo não presta Seu Valdomiro Pedreira Carlos, 90, também é assim. Faltar aula, para ele, é algo muito raro. Por esses e outros motivos, virou o queridinho na Escola Municipal Geraldo Bispo dos Santos, em Plataforma. Na terça-feira, ganhou a festa pela qual esperava há dois meses. “No ano passado, nós fizemos. Por isso, esse ano, ele vinha dando indiretas, falando: ‘outubro está chegando”, explica a professora Rosinete Dias.  Seu Valdomiro ganhou uma festa na escola pelos seus 90 anos, com direito à companhia da filha e dos netos (Foto: Betto Jr./CORREIO) Ele chegou à instituição no ano passado, depois que decidiu que queria aprender a ler. Quando criança, nunca foi muito assíduo nas aulas. Ia dois, três meses e largava. Não conseguiu aprender nem a assinar o nome. “Eu vim estudar para aprender a ler alguma coisa, para ler a Bíblia. Não adianta ter medo da escola. Medo não presta”. 

A diretora da escola, Maria Auxiliadora Garrido, acredita que o que mais o motiva a estar ali é a possibilidade de socializar – até mais do que o aprendizado. “Aqui, ele encara todos como seus iguais. Tanto ele quanto os outros se sentem à vontade para errar, se expressar e não serem criticados por ninguém. A escola é o espaço que eles podem ser livres”, opina.   

Para os colegas, seu Valdomiro é um exemplo. Aos 18 anos, o jovem Osvaldo Bonfim também estuda no TAP 2, mas reconhece que não é tão presente nas aulas quanto o companheiro mais velho. “Ele não falta nenhum dia. Me incentiva porque eu não gosto de faltar, mas, às vezes, acontece. E ele é um idoso muito gente boa, alegre, carinhoso”.

Segundo a geriatra Mônica Moreno, da Vitalmed, ir à escola traz benefícios aos idosos. “Traz a manutenção da capacidade cognitiva e intelectual. Você consegue trabalhar também a parte emocional, porque, a partir do momento que ele só fica em casa, pode desenvolver doenças como depressão e começar a ter restrições motoras”. Ela indica, ainda, avaliações oftalmológicas e auditivas para aqueles idosos que desejam estudar, para acompanhar melhor as aulas. “E é bom ter uma alimentação legal, como qualquer estudante, ter cuidado ao sair e ter postura na mesa”. 

Para a também geriatra Alini Ponte, a escola abre um leque de benefícios para a qualidade de vida do idoso. Entre eles, ela lista a possibilidade de participação, o convívio com pessoas de diferentes idades e a troca de informações e experiências. “Isso agrega muito à qualidade de vida. O isolamento social pode levar a um quadro de depressão”, explica. 

Ainda de acordo com ela, os ganhos são também na esfera emocional, que se refletem no grau de satisfação do idoso. “Quando ele se propõe a desenvolver uma atividade, ele cria uma expectativa, se projeta para o futuro, tem essa expectativa de futuro. Isso estimula e dá sentido para a vida. Ao cumprir uma meta, ele eleva a autoestima”, ressalta. Ao concretizar desejos como ler a Bíblia e assinar o nome, os idosos têm a sensação de missão cumprida e que o grau de satisfação com a conquista aumenta a autoestima.

Ela alerta ainda que a depressão tem muito a ver com a parte cognitiva. "Como geriatra estimulo a leitura, as palavras cruzadas, toda a forma de atividade que estimule o cognitivo é importante para o sistema nervoso central”, explica. No entanto, ela esclarece que, para haver esse estímulo, é preciso realizar uma atividade que exija algum esforço mental.

“Não basta só ler. Se já gosta de ler, a pessoa tem que aprender a tocar um instrumento, aprender um idioma. Se gosta de português, tem que estudar matemática. Tem que ser algo desafiador”, informa, acrescentando que estudos já comprovaram que isso ajuda a prevenir doenças cerebrais degenerativas como o tão temido Alzheimer, ou até mesmo retardá-lo.“É a questão do envelhecimento ativo que faz com que o idoso viva cada vez mais e com mais qualidade de vida”,  

Entrar na EJA E, para quem quiser se matricular na EJA ou conhece algum idoso que gostaria de ir à escola, o caminho é fácil: basta ir até uma escola municipal e fazer a matrícula. Se houver vaga naquela instituição, o novo estudante será imediatamente acolhido, de acordo com a assessoria da Secretaria Municipal da Educação (Smed). 

Mas nem todas as escolas oferecem esse tipo de ensino: das cerca de 400 da rede municipal, 146 contam com vagas para a EJA. Para buscar a escola mais próxima de você, basta visitar o site da Smed, que apresenta o mapa com todas as instituições da cidade: http://mapa.educacao.salvador.ba.gov.br/inicio. No portal, dá para selecionar apenas os colégios que oferecem as séries da EJA.   

Conheça alguns dos alunos mais velhinhos da rede municipal de Salvador: 

Dona Norberta – A primeira a chegar  Dona Norberta Pereira de Assis, 99 anos, é sempre a primeira a chegar na Escola Municipal Comunitária Cristo Redentor, na Chapada do Rio Vermelho. Morando a poucos metros do colégio, na Rua Paulo VI, ela costuma sair de casa às 18h, mesmo que a aula comece às 19h. Quando aponta nas proximidades do portão, há sempre alguém que corre para ajudá-la a vencer as escadas e o chão íngreme.  Dona Norberta mora pertinho da escola e é sempre a primeira a chegar (Foto: Betto Jr./CORREIO) Desde o ano passado, essa é a rotina dela, enquanto aluna da Educação para Jovens e Adultos (EJA). Foi levada para a escola por uma vizinha, que percebeu que ela ficava sozinha em casa. Prestes a completar 100 anos em dezembro, dona Noberta mora sozinha. Dois oito filhos que teve (quatro homens e quatro mulheres), só tem certeza que uma está viva e vive no bairro de Castelo Branco. Algumas vezes por semana, costuma visitar a mãe. Há, ainda, outra filha de quem não sabe mais nada. A menina foi para Brasília, anos atrás, e, desde então, perderam contato. A mãe não sabe se “ela está morta ou se está viva”.  

“Eu sou velha, obedeço todo mundo. Esses jovens que estão aí que não obedecem ninguém”, diz, com ar de sabedoria. Natural de Irará, no Centro-Norte do estado, veio para Salvador na juventude, depois de se casar. “Vim trabalhar em casa de branco”, diz, referindo-se às casas de família onde trabalhou, ainda adolescente, como empregada doméstica. Passou 20 anos com o falecido marido. 

Ela não lembra quando deixou de estudar. Diz que está tão velha que lhe falta memória sobre os primeiros momentos em sala de aula. Mesmo assim, dona Norberta já tinha sido alfabetizada quando chegou à escola na Chapada do Rio Vermelho. O que ela não esquece era do tempo que encarou a enxada, cortando mandioca. “Desde novinha”, diz. 

O desejo de estudar veio só recentemente mesmo. “Gosto de ler um bocadinho. Leio os livros da escola em casa e depois descanso”, conta, diante de dois exemplares – um de Matemática, outro de Língua Portuguesa. “Quando eu me aborreço, fecho (os livros)”. 

Dona Norberta acredita que não tem dificuldades. Diz que o povo de sua idade só gosta de ver novelas. Ela até gosta, mas escolhe bem o que vai assistir. “Eu venho para a escola porque vou no ponto de ônibus e sei ver as letras. Não vou precisar pedir ajuda a ninguém, nem parar no lugar errado”. Ela garante que é boa aluna, ‘graças a Deus’. 

Seu Valdomiro – O Conselheiro Fiscal da escola  Aos 7 anos, Valdomiro Pedreira Carlos perdeu os pais. Foi criado pelo mundo, como gosta de dizer. Nasceu em Ruy Barbosa, no Centro-Norte, embora o registro no cartório diga que foi em Castro Alves, no Recôncavo. Foi ajudante de pedreiro, zelador de convento e motorista de caminhão, mas só agora, aos 90 anos, aprendeu a ler e a escrever. 

De segunda-feira a sexta-feira, desde 2016, suas noites são na Escola Municipal Geraldo Bispo dos Santos, em Plataforma. Ou, pelo menos, das 19h às 21h. “O que me motiva a vir mesmo é estudar, aprender alguma coisa. Eu queria ler a Bíblia”, conta. Ele é tão presente no colégio que foi escolhido como Conselheiro Fiscal da instituição – e, segundo a direção, não falta a nenhuma reunião.  Seu Valdomiro foi eleito Conselheiro Fiscal da escola que frequenta (Foto: Betto Jr./CORREIO) Quando criança, os estudos se resumiam a dois, três meses em um ano. Nunca mais do que isso. Resultado: acabou absorvendo muito pouco. Trabalhava numa fazenda quando, aos 20 e poucos anos, conheceu aquela que viria a ser sua namorada – e, posteriormente, sua esposa. Ela se mudou para a capital. Um dia, ele decidiu que viria vê-la e passaria 15 dias. A quinzena acabou e ele não voltou. Em 1955, os dois se casaram. 

Mesmo sem ler ou escrever, seu Valdomiro se virava bem. “Eu fazia vendas, prestava conta da fazenda”, lembra. Já no convento onde trabalhou por pouco mais de dois anos, no bairro da Vitória, as freiras tentavam ensiná-lo. Mas não dava muito certo – ele não achava que iria aprender. 

Hoje, ele vive sozinho. A esposa, adoentada, está na casa de uma das filhas. Os netos – são 35, além de 13 bisnetos – o ajudam. O marinheiro e estudante de técnico em Enfermagem Eduardo Diniz, 19, diz que o avô o inspira. “Nos momentos de dificuldade, penso: ‘se meu avô consegue, eu também consigo”. 

A filha Valdeci Silva, 45, morre de orgulho. Quando o pai decidiu estudar, ela postou uma foto em seu perfil no Facebook anunciando a novidade. “Uma vez, ele estava desanimado, por causa do cansaço da idade. Eu disse para ele não desistir e ele continuou. Voltou a ficar para cima, porque ele é muito alegre, sempre desse jeito”. 

Dona Guilhermina – A que tem identidade A aposentada Guilhermina Conceição, 78 anos, sente como se os funcionários da Escola Municipal Comunitária Cristo Redentor, na Chapada do Rio Vermelho, fossem sua família. Não cansa de tecer elogios às professoras. “Elas são minhas mães, mesmo eu sendo mais velha. É a melhor escola”. 

Tanto amor tem uma explicação. Foi ali que ela conseguiu uma identidade – no caso, o documento RG. “Eu tinha identidade, mas botava o dedo. Não conseguia assinar meu nome”, diz, lembrando de como era a vida há seis anos, quando entrou na EJA. 

Ela entrou por acaso. Sentia que estava muito parada em casa, depois que conseguiu se aposentar. Um dia, passou por uma escola e viu a placa. Decidiu que tentaria estudar. Acabou não ficando no primeiro colégio por ser longe de casa, mas acabou na Cristo Redentor. 

Antes disso, trabalhou 28 anos em uma escolinha particular no Rio Vermelho. Era auxiliar de disciplina, mas não tinha tempo para tentar estudar. Nunca tinha frequentado uma sala de aula. “Não tive estudo. Nasci e me criei numa cidade chamada Araçás e lá não tinha escola. Quando montaram escola lá, eu já estava trabalhando para família em Salvador”, lembra. 

Dona Guilhermina veio para Salvador aos 15 anos. Foi empregada doméstica na casa de uma família na Federação. “A vida não me deu estudo. Me deu foi trabalho, cozinha, vivia fazendo as coisas caseiras”. Aos 24, se casou e, há 11 anos, se tornou viúva. Não quis mais se casar. Os tempos são outros, ela explica. 

Mãe de três filhas, já tem duas bisnetas – uma de 11, outra de cinco anos. É a de 11 quem lhe ajuda com as atividades escolares. “Quando eu cheguei (na escola), não sabia nada. Ainda leio muito pouco, mas, graças a Deus, para o que eu era, hoje em dia estou joia”, conta, sem deixar de lembrar dos tempos em que sofria com as dificuldades para pegar um ônibus. Tinha que sair perguntando ou pedir para que outra pessoa escrevesse o endereço para onde ela tinha que ir em um papel. Depois, entregava o papel ao motorista.  

“A escola é minha casa. Tenho boas amizades, me dou bem com todo mundo. Para o que eu era, hoje eu sou outra”. Colega de sala de dona Norberta, ela também conseguiu uma mesa mais alta para acompanhar as aulas. Como tem artrose, não pode sentar nas cadeiras menores. “Fico parecendo a chefona (na mesa maior)”, brinca. 

Ela diz que tem um “problemazinho de esquecimento”, mas a escola ajuda a distrair a mente. E, devagar, em seu próprio ritmo, tem conseguido lembrar de tudo – até do que já tinha esquecido. 

Seu Otaviano – O que sonha em ler a Bíblia Seu Otaviano Brito, 93 anos, já passou por muita coisa. Já perdeu dinheiro, teve que pagar empréstimo que nunca tomou. Tudo porque não sabia ler. Natural de Jequié, no Centro-Sul, ele chegou a Salvador em janeiro. Veio morar com as filhas em Colinas de Itapuã, depois de anos relutando a sair do interior. 

Desde então, estuda na Escola Municipal Cidade Vitória da Conquista, em Itapuã. “Eu quis ir porque, antes de morrer, eu queria poder assinar meu nome. Estou gostando demais porque, na escola, achei um grande respeito. As professoras são muito legais”, conta.  Sob o olhar e sob as lentes fotográficas da filha, seu Otaviano costuma fazer o dever de casa (Foto: Reprodução) O aposentado conta que nunca tinha ido a uma escola. Com o trabalho de ‘andar pelo mundo’, se acostumou a viajar. Na época, mesmo analfabeto, trabalhava como agente de endemias para o Ministério da Saúde. No passado, muitos órgãos públicos não exigiam concursos. Como Otaviano era esforçado, logo foi efetivado. 

Muito desconfiado, Otaviano não acreditava no que lhe diziam. Ao mesmo tempo, não entendia o que estava escrito em muitos papeis que assinava. “Ele perdeu muito dinheiro com isso”, conta a filha dele, a estudante de Enfermagem Ivonete Brito, 40. 

Os filhos estimam que ele tem pelo menos 25 filhos – a maioria não registrado. Ele mesmo reconhece que tem muitos por aí, mas não sabe por onde andam. Conhecidos mesmo, são 12. Há 17 anos, ficou viúvo do último relacionamento. Desde então, vivia sozinho em Jequié. 

Quando chegou na casa da filha, ele diz que procurava algo que o divertisse. Achou o colégio. “As professoras dão atenção a todo mundo, tem uma paciência enorme. São muito alegres”, explica. E, se antes, ele não conseguia escrever nada, agora já conseguiu realizar pelo menos o sonho inicial: já consegue assinar o nome.  Natural de Jequié, seu Otaviano veio para Salvador morar com a filha. Desde então, está estudando (Foto: Reprodução) Para a filha Ivonete, a escola tem sido uma terapia para o pai. Quando ele não vai à aula, ela passa atividades para ele, assim como faz com o filho de oito anos.  Hoje, seu Otaviano consegue ler bem palavras com até três sílabas. Quando consegue alguma proeza maior, comemora, bate palmas. 

Mesmo sem ter religião, gosta de ser a Bíblia. Costuma dizer aos parentes que, no dia que ler a Bíblia toda, vai ser feliz. “Ele é disciplinado e todo mundo ajuda ele, para incentivar o máximo possível. É a forma que a gente tem de manter ele ativo aqui, sem ficar deprimido em casa. E a mente dele está cada dia mais lúcida, mesmo com o corpo debilitado”.