Carnaval sem cordas em Salvador: presente ou o futuro da folia?

De 2,5 milhões de foliões nas ruas, cerca da metade foi ver as apresentações gratuitas, na estimativa da Saltur

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  • Alexandro Mota

Publicado em 1 de março de 2017 às 07:00

- Atualizado há um ano

A odisseia terrestre nos conta a história: o trio elétrico de Dodô e Osmar, criado em 1950, não tinha cordas. Eram os artistas, o carro e a música. Em 2017, diante de um Carnaval marcado pela pipoca – com mais de 300 atrações gratuitas – é justamente a música de trabalho de Armandinho, Dodô e Osmar que leva à reflexão: ‘Pra que corda?’. E agora: revivemos, no presente, um passado que não deveria ter ficado para trás ou estamos diante do futuro do nosso Carnaval? 

Os órgãos públicos não sabem precisar, mas estimam que esse seja o Carnaval com maior adesão à pipoca nos últimos anos. De 2,5 milhões de foliões nas ruas, cerca da metade foi ver as apresentações gratuitas, na estimativa do presidente da Saltur, Isaac Edington. O número de atrações também cresceu em relação ao ano passado, quando foram cerca de 200. Entre patrocínios privados e apoio público, teve pipoca para todos os gostos: de Baby do Brasil a Léo Santana, de Moraes Moreira a Carlinhos Brown, de Ivete Sangalo a Mc Beijinho, de Cláudia Leitte a Igor Kannário. Só ontem, no Campo Grande, os trios sem corda traziam nomes como Daniela Mercury, Olodum, Cheiro, La Fúria e Alinne Rosa. 

Para Aroldo Macêdo, filho de Osmar Macêdo, seja em 1950, seja em 2017, a realidade é da pipoca. “Nós somos pipoca desde 1950, então, para a gente, não há diferença. Agora, o Carnaval é cíclico. É bom que seja assim, porque ele vai rodando, girando. Já foi aberto com Dodô e Osmar, depois, foi ficando fechado porque o trio elétrico acabou com os clubes”, lembra. Armandinho, Dodô e Osmar são os reis da pipoca desde 1950 (Foto: Max Haack/Agência Haack)

Ele reforça que, hoje, muitos dos artistas que passaram a tocar para a pipoca ‘nasceram’ dentro das cordas. “Eu não sei avaliar para os outros, eles têm que ver qual é a emoção deles. Eles é que devem dizer. A gente sempre foi assim, vai ser sempre assim e não precisa mudar nada. A gente só precisa que os empresários e as empresas apoiem e patrocinem”. 

'Corda pra quê?'

Caíque estava curtindo a pipoca do Olodum na terça (28)(Foto: Alexandro Mota/CORREIO)Se o ambulante Caíque Fonseca da Costa, 26 anos, tivesse combinado com os Macêdo, talvez tivessem escrito a nova música juntos. “Corda pra quê?”, indagava ele, quando foi abordado pelo CORREIO. Ontem, foi curtir a pipoca do Olodum, mas a que mais se empolgou, foi a de Cláudia Leitte, que estreou em um trio sem cordas no sábado, na Barra. "A gente olha assim e pensa: não poderia ser assim sempre?A gente consegue aproveitar sem gastar mundos de dinheiro. Carnaval tem que ser alegria e não ficar se preocupando em pagar e pagar".Folião do tipo ‘observador’, o professor aposentado Sérgio Ferreira, 57, vê, na pipoca, um caminho para a folia. "Na Barra, vi trios com corda achando que eram donos da avenida e apertando os trios pipoca da frente.  Mas é bom que o Carnaval esteja mudando. Eu acho que o futuro é esse. Quero que meus netos curtam muito Carnaval sem aperto".

O caldeireiro industrial Ed Carlos Costa, 31, foi curtir a pipoca do Olodum com a família. "O Carnaval para a pipoca dá espaço para as famílias. Todo mundo curte sem aperto no cantinho. Hoje, muita gente vem mais pra rua por causa disso, dessas atrações sem corda", opina.  

E a pipoca pode até não ter abadá, mas dá margens a criatividade. A servidora pública Carol Rabelo foi vestida de Mulher Maravilha seguir Daniela Mercury com as amigas, também com uniformes de heroínas dos quadrinhos. Para Carol, a pipoca não é só o futuro como também é o passado. "Desde sempre, eu saí de pipoca. Tenho resistência a bloco. E ficava retada porque não tinha assim tanta opção quanto hoje. O grande barato da pipoca é você ter a rua para você, ter a liberdade de ser quem quiser". A servidora pública Carol Rabelo (à esquerda) foi para o Centro com as amigas vestidas de heroínas de HQs (Foto: Alexandro Mota/CORREIO)Professora da Faculdade de Comunicação da Ufba e articulista do CORREIO, a jornalista Malu Fontes aposta no futuro.  “Ainda acho que a gente está vivendo uma transição. É o futuro e a gente ainda vai aperfeiçoar isso e ficar melhor ainda. O futuro elogiável e que a iniciativa privada, que ganha dinheiro com a população em todos os serviços, patrocine sozinha as festas, sem que entre um centavo do poder público”, opinou.

O arquiteto David Bastos também deu seu pitaco – mesmo indo na contramão da professora. “O Carnaval pipoca é o presente. Carnaval é sem corda e a pipoca arrasa sempre”. O goleiro do Esporte Clube Vitória, Caíque (goleiro do Vitória), também acredita que os trios sem corda já são a realidade momesca. “Acho interessante que se abra esse espaço para o povo de Salvador, para o povo de fora. As pessoas já estão tomando as ruas”. 

É a mesma opinião da promoter Licia Fabio. “O Carnaval começou assim. Saulo deu muita ênfase a isso, a beleza dele botou um perfuminho nessa coisa que é linda. Acho que o Carnaval é assim, não é à toa que o Brasil inteiro está fazendo, Rio, São Paulo”. 

Na dúvida Entre os artistas, a dúvida – presente ou futuro sem cordas? – ainda divide muita gente. Um dos principais pipoqueiros da atualidade e um dos primeiros da nova geração, o cantor Saulo sabe bem sua resposta. “É um presente!”, diz, sem titubear. O veterano Bell Marques prefere não escolher. Para ele, é o momento dos dois. “Os blocos e a pipoca sempre andaram juntos na história do Carnaval. A pipoca e o Carnaval sem cordas são passado, presente e futuro”. É uma opinião parecida com a do filho do artista, Rafa Marques, da dupla Pipo e Rafa. “É futuro e presente. Foi como o Carnaval nasceu e nunca deixou de existir. Os dois formatos sempre coexistiram e devem continuar”.  O cantor Saulo foi um dos primeiros da nova geração a investir na pipoca(Foto: Mauro Zaniboni/ Agência Haack)A cantora Margareth Menezes destaca que o Carnaval de Salvador nasceu sem cordas, de formas democráticas. “Hoje, existe um movimento natural das novas gerações de querer tirar as cordas, uma renovação para fortalecer o espaço do povo nas ruas. Isso é uma realidade atual. Eu não sou contra bloco, pois essa festa deve ter espaço para tudo, mas particularmente, acho que o carnaval melhor para todos é o sem cordas, o qual o povo tem acesso às ruas e os artistas cantam para todos”.

Por sua vez, a vocalista do Babado Novo, Mari Antunes, já acredita que baixar as cordas é o presente. “É mais uma opção para nosso folião no Carnaval, com agregação e democratização. É a mesma posição da sambista Ju Moraes. Para ela, as ruas já deram o recado. “Acho que o folião já respondeu essa pergunta. É o presente, o futuro e a melhor coisa que acontece no nosso Carnaval”. O sertanejo Dan Valente também faz coro. “Espero que fortaleça a popularização do Carnaval. Que as pessoas possam sair de casa com toda a segurança para curtir em paz”. 

A cantora Gilmelândia também vê o presente. “Ele (o Carnaval sem cordas) está acontecendo, realizando o desejo de muitas pessoas daqui e de fora”. É o mesmo caso do vocalista da Banda Duas Medidas, Lincoln Sena. “É impressionante, como você ter a pluralidade do Carnaval com cordas, sem cordas, camarote, traz uma grande alegria. O Carnaval são possibilidades diversas de acontecer”. 

Para o Rei do Axé, o cantor Luiz Caldas, a pipoca não é novidade, mas uma tendência do mercado de entretenimento. “Eu já faço Carnaval pipoca há muitos anos. Ela é só uma novidade para alguns blocos que não conseguiram se sustentar. É uma mudança mercadológica. O modelo que existia já deu o que tinha que dar e eles partiram para isso”, afirma, reforçando que sempre defendeu o Carnaval democrático. 

O cantor Bruno Magnata, da banda La Fúria, também já vê os trios sem corda como presente. “Carnaval sem cordas é a democratização da nossa festa, que vinha caminhando no sentido contrário anteriormente. Só que a crise fez com que os grandes empresários do carnaval passassem a aceitar essa realidade e nossos gestores a viabilizar isso”. A cantora Kall Medrado, que participou do The Voice Brasil, elogiou o movimento. “Acho que foi uma jogada bem bacana para o presente e o futuro. Não descartando também os blocos, os camarotes. Mas acho que o folião na pipoca, que vem de coração aberto para curtir, é muito bacana. Já é uma realidade”. 

É o que também defende o cantor Genard. “Esse tipo de iniciativa resgata os antigos carnavais e também está dando possibilidades para artistas baianos mostrarem repertórios mais diversificados, já que nas ruas temos todos os tipos de públicos”. 

O cantor Marcelo Timbó, do Batifun, diz que a pipoca sempre foi a essência do Carnaval. “Só que, nos últimos anos, os blocos realmente perderam muito espaço, pois o mercado que está por trás deles não é mais lucrativo como antes”.  O ator Luís Miranda diz que as cordas tiram muito espaço da rua. "(Carnaval sem cordas) É um clamor que vem de baixo e o clamor que vem de baixo tem sempre que ser ouvido. Por conta dos camarotes, as ruas têm ficado pequenas. Então, o Carnaval tem que ser sem cordas, para vermos as pessoas brincando". 

Para o cantor Adelmo Casé, a pipoca nasceu de uma necessidade das pessoas. “A corda teve sua importância e pode continuar, mas as manifestações de cunho mais democrático, digamos assim, estão tomando conta de novo das ruas e isso é muito bom”. 

Acertar o futuroPor outro lado, a dj Miss Cady defende que o movimento ainda leva para o futuro. “As pessoas realmente têm que ter um pouco mais de segurança e peitar e realizar suas ideias. Sinto que muitos artistas querem fazer isso. A BaianaSystem faz, Daniela faz, Ivete fez – e já fazia no Arrastão... Acho que a moda está pegando. E é uma moda maravilhosa”.O ator Lázaro Ramos também é do time que defende que esse modelo de festa indica o futuro. “(A pipoca) Já foi o passado, passou um momento em que a vista da pipoca não era privilegiada. Eu acho que o caminho é justamente esse. A festa Carnavalesca é claro que precisa ter dinheiro para movimentar, mas fica muito mais bonita quando a pipoca está dentro, está podendo aproveitar de novo”.  Milhares de pessoas seguiram a pipoca da Baiana System no Campo Grande, no sábado (25)(Foto: Sérgio Pedreira/Agência Haack)Nascida na pipoca, a Baiana System acredita que é lá que está a saída para reduzir os índices de violência no Carnaval. "Tem gente para c... na nossa pipoca, mas tá assim zero de violência. Sabe por quê? Pela ausência de cordas. Diminuímos isso por que as cordas não existem. 40% das brigas no Carnaval é por causa das cordas. O mais importante é que a gente não tenha nenhuma briga", disse o cantor Russo Passapusso. 

Mas, como a própria prefeitura destaca, espaço para a pipoca não significa diminuir o espaço para os blocos. “Pelo contrário. Tem que ter espaço para o folião pipoca e a gente quer que os blocos sejam fortalecidos. Não somos contra camarotes, assim como a gente quer que os blocos afro tenham uma sustentabilidade melhor. O que a gente deseja é que todos os entes do Carnaval sejam fortalecidos”, afirmou o presidente da Saltur, Isaac Edington. 

O prefeito ACM Neto também reforçou que não há preconceito, por parte da administração municipal, com os blocos de corda. “Eles (os blocos) precisam continuar existindo porque geram empregos e movimentam a economia, assim como os camarotes, então eles não podem acabar. Agora, cada vez que a gente possa oferecer uma quantidade maior de atrações sem corda, melhor para a cidade e para o folião”.

O governador Rui Costa (PT) também opina: “O Carnaval está voltando a ser o que era antes, todo mundo junto e misturado”, declara.

*Colaboraram Gabriela Cruz, Juliana Montanha, Naiana Ribeiro, Priscila Natividade e Victor Villarpando