Caruru com sotaque: mais da metade dos ingredientes do prato vêm de outros estados

Quiabo, camarão, amendoim, farinha e até o coentro são de fora

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 22 de setembro de 2017 às 16:12

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO

“Mas que viagem longa da bexiga, viu?”, reclama o quiabo sergipano. “Meu, não fale, não, mano”, concorda o amendoim torrado paulista. “Não se avexem, não, cabras. Num instante a gente chega lá”, tranquiliza o camarão de Fortaleza. 

Não entendeu nada? Pois bem. Pode até ser brincadeira, mas se esses ingredientes cheios de sotaque e brasilidade pudessem falar, é bem provável que o diálogo fosse mais ou menos esse aí. Cada um vindo de um ponto do Brasil, eles aportam bem aqui, na Bahia – mais especificamente, no seu prato de caruru baianíssimo, em Salvador.  Você sabe de onde vêm os ingredientes do caruru? (Foto: Angeluci Figueiredo/Arquivo CORREIO) A pedido do CORREIO, a coordenação de mercado da Ceasa de Simões Filho indicou de onde vêm 12 dos principais produtos usados no caruru. Lá, cerca de 700 permissionários vendem produz – a maioria, no atacado – a comerciantes de outras feiras, como São Joaquim e Sete Portas, além de grandes redes de supermercados. 

E adivinha? Dos 12, pelo menos oito vêm de outros estados, nem que seja uma parte. Além do quiabo, do camarão e do amendoim, é o caso da castanha de caju, do gengibre, do frango, da farinha e do coentro. Na lista dos forasteiros, pode acrescentar produtos do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Santa Catarina e do Paraná.  Boa parte do gengibre vem de São Paulo. Segundo comerciantes da Ceasa, o preço lá está mais barato do que no Espírito Santo (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) “A gente não produz quase nada, né?”, brinca o comerciante Jairo Ornelas, 61 anos, quando questionado se sabia qual era a origem dos produtos. Dono de um mercadinho no Alto das Pombas, ele vai à Ceasa de Simões Filho às segundas, quartas e sextas-feiras – dias da feira – para comprar produtos que vai revender. 

“Nessa época do ano, o pessoal procura muito os produtos do caruru. Sei que o camarão vem muito de Alagoas, né?”, chuta. Na verdade, não. De acordo com a Ceasa, boa parte do camarão vem de Valença, na Bahia mesmo, mas permissionários ouvidos pelo CORREIO contam que os crustáceos também são cearenses e cariocas. 

Camarão de outras águas  O preço do quilo chega a R$ 52 (com a saca de 10 kg saindo por R$ 500), mas o vendedor Marcos Reis, 36, garante que o preço não é influenciado pelo destino. “Nessa época, a procura aumenta muito, por isso que o preço sobe. Não é pelo lugar que vem, isso não tem diferença”. 

Quem vive do caruru durante todo o ano nem se surpreende mais. A presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Rita Santos, conta até uma situação inusitada. De tanto que o camarão é exportado de Fortaleza para a Bahia, quase a iguaria não é encontrada pelas baianas de lá.  Camarão vem da Bahia, principalmente de Valença, mas também de Fortaleza e do Rio de Janeiro (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) “Eu tenho que mandar de volta para elas, porque não acham para comprar. É incrível. É a mesma coisa da fita de Senhor do Bonfim, que é uma coisa nossa, mas é feita em São Paulo. Aqui, até tem, mas é impossível comprar por ser muito caro”, opina. Segundo ela, a Abam está promovendo reuniões com pequenos agricultores de cidades como Camaçari e Dias D’Ávila, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), com o objetivo de firmar um acordo para que as baianas de Salvador comprem diretamente deles. 

Quando o CORREIO visitou a Ceasa, o empresário Rogério Ignácio, 56, comprava os ingredientes para o preparo de um caruru para cerca de 50 pessoas neste sábado (23). Todo ano, ele promove a festança para os funcionários de seu restaurante, o Cantina Cosa Nostra, na Pituba. “O quiabo vem dessas plantações de nosso interior, né?”, arriscou. 

Quiabo sergipano Na verdade, não. A maioria é como o quiabo vendido pelo comerciante Daniel de Sousa, 64, que vem de Canindé de São Francisco, no sertão de Sergipe. De acordo com a Companhia de Recursos Hídricos e Irrigação de Sergipe (Cohidro), Canindé domina nas vendas de quiabo em Salvador e Feira. Segundo o órgão, que é ligado ao governo de Sergipe, entre 70% e 80% dos quiabos consumidos aqui são de Canindé. 

“É porque aqui na Bahia tem pouco quiabo”, explica Daniel, que está na Ceasa há 20 anos. Lá, vende tanto para quem quer comprar no varejo (o quilo sai a R$ 7) quanto para quem quer revender (a saca de 24 kg por R$ 100). “Mas vir de longe não interfere em nada”, diz, garantindo que os custos da viagem não são repassados aos clientes.  Tão comum no caruru e na culinária baiana, o quiabo vem de Sergipe (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Um ou outro ‘molho’ de coentro pode até vir de cidades como Conceição do Jacuípe, no Centro-Norte do estado, mas a maioria vem mesmo é de Sergipe. “Lá tem muita produção de coentro, mais do que aqui”, explica a vendedora Cláudia Brito, 34. Um molho de coentro sai por até R$ 10, a depender do permissionário. 

O gengibre tem representantes aqui, mas é majoritariamente paulista. Logo que a reportagem chegou à Ceasa, pelo menos cinco funcionários de um dos atacadistas descarregavam um caminhão repleto do produto. A origem? São Paulo (SP).

O proprietário do Comercial Macêdo, Alexandro Ferreira, diz que também tem o gengibre que vem do Espírito Santo. “Mas o de São Paulo ultimamente está com um preço mais barato. Na Bahia, a produção é muito pequena ainda”, diz. Lá, uma caixa com 11 kg de gengibre é vendida por R$ 85. 

Baiana radicada em Sergipe Com a castanha, é a mesma coisa. Até temos espécimes baianas, mas, de acordo com a Ceasa, outras vêm do Ceará. Comerciantes ouvidos pelo CORREIO acrescentam, ainda, o vizinho Sergipe. Mas, de acordo com o coordenador do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Bahia, Fernando Braga, há indícios de baianidade entre os nordestinos importados.  Por trás das castanhas que vêm de Sergipe, há castanhas baianas (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Ele explica que, de fato, a Bahia nunca foi uma grande produtora de castanhas de caju, embora existam muitos cajueiros pelas bandas de cá. “Já teve uma investigação muito grande sobre a castanha, porque tem produtos que não são produzidas visando ganhar economicamente. Na verdade, o produto até é cultivado, mas os serialistas da Bahia compram de quem saca, de quem cata. Vendem lá e volta importado como se fosse de lá”, pontua. 

Na verdade, isso acontece com as castanhas artesanais, de acordo com o coordenador técnico da Diretoria de Assistência e Extensão Rural da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado (Bahiater/SDR), Luís Barbosa. Ele destaca que, de fato, o Ceará é o principal produtor da castanha industrializada, seguido por Rio Grande do Norte e Piauí. Mas a Bahia vem logo em seguida, com 5,7 mil hectares plantados.“Essas castanhas que vendem em sinaleiras são nossas, da região de Ribeira do Pombal, de Cícero Dantas. Mas boa parte delas é comprada por comerciantes de Sergipe. Eles compram na região, processam em Sergipe e vendem na Bahia”, explica Barbosa.Ele reforça que as castanhas são produzidas pela agricultura familiar e, mesmo com a resistência dos cajueiros, as culturas foram afetadas pela estiagem.  

Produtos de identidade baiana Apesar de tudo isso, para o professor de gastronomia Elmo Alves, que ensina nos cursos do Senac e da Unifacs, as importações não interferem na identidade do caruru.  Ele reforça que, mesmo que venham de outros estados, são produtos que fazem parte da nossa cultura. “Existe um aspecto mercadológico, de incentivo ao agricultor, que não existe aqui. Acabou que esses produtos foram absorvidos por grandes produtores, por uma indústria que acaba centralizando. Somos obrigados, de certa forma, a comprá-los. Mas isso não tira a identidade alimentar desses ingredientes, que nos definem bem”, acredita Alves. Segundo ele, assim como o caruru representa a cultura baiana, o coentro, por exemplo, mesmo vindo de Sergipe, também tem a mesma simbologia. “O caruru continua sendo nosso, pertencente à nossa cultura alimentar. Representa a nossa religiosidade afrocatólica baiana. Esse prato é emblemático”, defende. 

Além disso, de acordo com Luís Barbosa, da Bahiater/SDR, boa parte dos produtos forasteiros na Ceasa são produzidos na Bahia também. Alguns, como é o caso do quiabo, são afetados pela sazonalidade. "O quiabo não gosta muito de frio, então a produção tende a cair. Como o Brasil tem diversidade de clima e solo, você tem outras regiões que produzem. Para não deixar os clientes a ver navio, porque o quiabo é consumido o tempo todo, os fornecedores oferecem". O quiabo é produzido, principalmente, no Recôncavo baiano. 

O amendoim é outro caso emblemático: embora a Bahia seja o segundo maior produtor do país, em termos de hectares plantados, é uma produção infinitamente menor do que São Paulo, o campeão. De acordo com Barbosa, são 136 mil hectares plantados contra seis mil. "E nossa produção tem um período característico que casa com o período das chuvas, antes do São João, que é tradição nossa".

Apesar dos produtos virem de fora, ele diz que essa não é uma preocupação, uma vez que são produtos da agricultura familiar. Da mesma forma, produtos produzidos aqui são vendidos nesses estados. "Embora não sejam da Bahia, são estados irmãos, assim como nós temos interesse que nossos produtos possam entrar em outros estados", diz, destacando o umbu, cuja produção é liderada pela Bahia.

Segundo ele, até mesmo geleias e cervejas da fruta têm sido produzidas e exportadas mesmo para outros países - principalmente, pela cidade de Uauá, no Nordeste. Outros produtos baianos que se tornam forasteiros em outros estados citados por ele são a farinha de mandioca, o beiju e frutas como a laranja e o maracujá. Inclusive, na quinta-feira (21), uma pesquisa do IBGE indicou que a Bahia é o segundo maior produtor de frutas do estado. 

Confira os preços dos produtos do caruru:

1 - Quiabo - origem: Sergipe e Bahia - saco de 20 Kg por R$ 1002 - Camarão seco - origem: Bahia (Valença), Fortaleza (CE)  e Rio de Janeiro (RJ) - 1 kg por R$ 45 a 523 - Cebola - origem: Bahia - saco de 20Kg média de R$ 254 - Amendoim torrado - origem: São Paulo - saco de 50 Kg por R$ 2405 - Castanha de Caju - origem: Bahia, Sergipe e Ceará - média de R$ 56 a 60 por quilo6 - Azeite de dendê - origem: Bahia - lata de 20 litros média de R$ 707- Gengibre - origem: Bahia, Espírito Santo e São Paulo - 1 kg por R$ 108 - Feijão Fradinho - origem: Bahia - saco de 10 Kg por R$ 25 a 309 - Banana da terra - origem: Bahia, quilo por R$ 2,50 a 310 - Frango - origem: Bahia, Paraná e Santa Cantarina - 1 kg por R$ 3,69 a 4,1911 - Tempero Verde (Coentro) - origem: Bahia e Sergipe - 1 molho por até R$ 1012 - Farinha - origem: Bahia e Sergipe saco de 50 Kg por R$ 180 a 200