Cenário de tragédia num dia, atração no outro

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  • Malu Fontes

Publicado em 28 de agosto de 2017 às 05:40

- Atualizado há um ano

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O mar da Bahia sempre remeteu às canções irretocáveis de Dorival Caymmi, embora provavelmente todo mundo que já tenha se detido para pensar um pouquinho em um dos seus versos mais famosos nunca deva ter entendido o que ele quis cantar quando escreveu "é doce morrer no mar". Na última quinta-feira, os baianos, principalmente a população de Salvador, do entorno da Baía de Todos os Santos e do Recôncavo, afinal as tragédias calam mais fundo em quem está geograficamente mais perto delas, sentiram a intensidade da dor da morte coletiva no mar.   Nunca havíamos visto coisa parecida tão perto. De lá para cá, desde as primeiras informações sobre o acidente com a lancha Cavalo Marinho I, o choque e o espanto só aumentam, mesmo porque, além dos 18 corpos reconhecidos e do corpo encontrado ontem, ainda há um adolescente desaparecido.

ATRAÇÃO - O espanto de ontem foi tomarmos conhecimento, na capa deste jornal, de que a embarcação não está isolada pelas autoridades, o que compromete o trabalho técnico de investigação e das perícias complementares das causas da tragédia. As perícias técnicas locais já foram feitas, mas informações ontem davam conta de que aguarda-se uma equipe do Rio de Janeiro para uma perícia complementar. Se repórter e fotógrafo do Correio* conseguiram entrar na embarcação e por lá viram uma romaria de curiosos olhando e fotografando tudo, transformando-a numa espécie de objeto de curiosidade e de atração, como fica a preservação das provas para essa última perícia?   E se não foi tão somente um acidente causado pelo mar revolto, cujas ondas invadiram a embarcação, empurrando com sua força todos os passageiros para um mesmo ponto? E se foi algo que tornava aquela travessia um risco, o que se configuraria em crime, e isso não foi detectado nas perícias já feitas, o normal não seria isolar a embarcação até a conclusão de todas as análises técnicas, sob o risco de apagar provas ou indícios fundamentais para a apuração?

BALDES - Outro aspecto, entre os inúmeros que chamam a atenção no contexto dessa tragédia, é o fato de governantes, autoridades responsáveis pelo transporte marítimo e a sociedade em geral ignorar a forma arriscada como milhares de pessoas são obrigadas a se deslocar entre as demais ilhas da Baía de Todos os Santos e entre elas e a capital. Quando se fala no assunto é como se o fracasso do sistema se reduzisse ao sistema de lanchas da travessia Mar Grande-Salvador e ao Ferry Boat, sucateado, ineficiente e desconfortável no grau máximo. Vão ver o Terminal de Embarque de São Tomé de Paripe. Vejam que controle e fiscalização existem ali, sobre quantas pessoas embarcam, quantos embarcam sem registro por amizade com os marinheiros. E assim as coisas funcionam em todas as ilhas do entorno. Centenas de estudantes, a maioria crianças, e trabalhadores têm a vida colocada em risco todos os dias nas águas da Baía.   Há poucos anos, acompanhada de vários jornalistas, na volta de um evento na ilha de Caboto, vi o barco em que estávamos enchendo-se de água a metros e metros do píer de embarque, por excesso de carga no convés de baixo, no início de uma noite de sábado. Sorte conseguirmos voltar ao ponto de partida sem afundar, graças aos ajudantes do marinheiro que retiravam baldes e baldes de água. Na última quinta-feira, a água veio das ondas, empurrou as pessoas com sua força e não houve retorno, só mortos e sobreviventes. Vamos esperar outro caso, sem que nada mude, enquanto uma literal nau de insensatos sonha com dinheiro para uma ponte sobre o mar?