Coluna Vertebral: Sophia, Marcello e as manhãs tão bonitas manhãs

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 28 de janeiro de 2018 às 11:41

- Atualizado há um ano

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[O presente] [Parque de cidade qualquer de qualquer lugar do planeta] [Domingo, 21 de janeiro de 2018].

Agitados, depois de correrem feito bobos alegres entre os pequenos lagos das cercanias,  Sophia e Marcello desabam no gramado úmido e frio.  Ela tem 13 anos. Ele, 14. São amigos. São colegas de escola. São risonhos e francos.  

Sophia é branca feito leite. Sophia tem pequenas sardas que parecem dulcíssimas bolinhas de ambrosia nas faces rosadas. Sophia tem cabelos ruivos e cacheados que vão até quase à cintura. Marcello é mulato feito chocolate. Marcello tem sorriso de abrir descaminhos. Os olhos de Marcello  têm cor de jabuticaba. Marcello tem cabelos negros cortados rente. Sophia tem olhos azuis-da-cor-do-mar. Sophia tem olhar de abrir descaminhos.  

[Conhecem-se há muito. ‘De outras vidas’, costuma dizer madame Amalie, 82, bisavó de Marcello].

Deitados, arfam de cansaço e sorriem não sabem exatamente de quê. Levantam-se novamente e voltam a correr. Sentam-se, exaustos, em banco ao lado de quiosque de bebidas e sorvetes. Dividem picolé de frutas tropicais e gracejam.

As palavras de Marcello ainda lhe saem da boca meio emboladas,  meio imperceptíveis por causa do corre-corre durante toda a bonita tão bonita manhã.

Mas o que Marcello diz é: - Você tem os olhos mais belos do mundo.

Sophia, sapeca e sorridente, provoca: - Você gosta?

Ele:  - Muito!

Ela: - Também gosto dos seus olhos de jabuticaba.

As palavras de Sophia ainda lhe saem da boca meio emboladas, meio imperceptíveis por causa do corre-corre durante toda a bonita tão bonita manhã.

Mas o que Sophia diz é: -  Pelo menos um dos meus  olhos eu posso te dar. 

Marcello sorri. Sophia ordena: - Fecha bem os olhos e abra bem as mãos. Marcello obedece. Sophia tira de maneira delicada a prótese que lhe ocupa o globo ocular esquerdo desde o acidente de carro que lhe matou os pais, aos 2 anos – e a deixou com 1 olho só.

Sophia coloca a prótese ocular nas mãos abertas em concha de Marcello, e ordena: - Agora pode abrir os olhos, seu bobo!

Marcello vê o que tem nas mãos. Marcello olha para o rosto ora incompleto de Sophia. Marcello desmaia.

[O futuro] [Às margens de rio de cidade qualquer, talvez o Sena, talvez Paris] [Sábado, 2 de julho  de 2022] [Madame Amalie está morta].

Marcello e Sophia estão nus. Os cabelos de Sophia se arrastam até os joelhos. Os de Marcello se expandem à la black power.  Os olhos azuis-jabuticaba de ambos coruscam. Beijam-se na boca. Os amigos os celebramos. Estamos nus, inclusive este velho escritor – é Verão nessa cidade que talvez seja Paris. Todos – também gatos, cachorros e iguanas,  amigos de estimação de alguns convidados – dançamos ao som das canções de Hair (1968). As crianças nadam no rio. [Menu: águas Perrier + vinhos brancos demi-sec + ratatouille + profiteroles].

Marcello e Sophia serão felizes para sempre? Aposto que sim. [O narrador sou eu! Le narrateur c’est moi!].

[PS. Esta fábula urbana é dedicada a 2 dos meus 8 amados sobrinhos-netos: B, 13 anos, e A., 11].