Com whiteface, Black Off faz dura crítica ao racismo na abertura do Fiac

Atriz e performer sul-africana Ntando Cele defende humor para provocar desconforto e reflexão

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  • Da Redação

Publicado em 24 de outubro de 2017 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Estrelado pela atriz e performer sul-africana Ntando Cele, Black Off é um dos quatro espetáculos internacionais do 10º Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac). A peça ganha duas apresentações no evento: hoje, durante a abertura, e amanhã. As sessões acontecem sempre às 20h, no Teatro Sesc Senac Pelourinho. Os ingressos custam R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia). 

Nele, Ntando assume o seu alter ego Bianca White, uma apresentadora viajante do mundo que julga ter um conhecimento profundo sobre negros e quer ajudá-los a superar a sua “escuridão interior”. No palco, a atriz pinta o rosto e corpo de branco, veste uma peruca loira e aparece em uma versão whiteface - alusão irônica à técnica do blackface, onde pessoas brancas pintam o rosto de preto.

Provocador, o espetáculo aposta no humor como um lugar de reflexão. A atriz, que já apresentou a peça em vários lugares do mundo e chega a Salvador com o apoio da fundação suíça Pro Helvetia, conversou com o CORREIO por e-mail sobre o espetáculo. Confira bate-papo:

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Você já teve a oportunidade de apresentar Black Off em muitos países ao redor do mundo, incluindo o Brasil, para onde você está retornando agora. Existe uma diferença na recepção do público em cada lugar? O que você espera ver em Salvador, uma cidade essencialmente negra? Há uma enorme diferença entre Rio, São Paulo e Recife, na forma como o público está familiarizado com esta "arte complicada", mas quando se trata de racismo, a resposta de todos é de vergonha e desconforto, porque Black Off envolve a todos na plateia. Eu acho que mesmo que Salvador tenha origens históricas ricas e perturbadoras o suficiente em relação à escravidão, a discussão sobre a descolonização segue sendo relevante. O público negro presente na plateia geralmente reconhece a ignorância de Bianca White em nome da ajuda e do desenvolvimento do "outro".

O alter ego de Bianca White chama a atenção por conta dessa brincadeira com o nome, pelo comportamento e pela caracterização extravagante. Há um desconforto na plateia, considerando que seus espectadores devam ser em sua maioria brancos? É interessante que as pessoas acham Bianca White engraçada até certo ponto. Ela parece um pouco estúpida e ingênua, então, pode deixar escapulir em público coisas que os brancos dizem em particular. Às vezes, dependendo de onde o riso sai, eu mesma, em um nível pessoal, me sinto desconfortável.Podemos classificar o show como humorístico? O humor é uma chave interessante para repensar os preconceitos e as ações do dia-a-dia? Por quê? Sim, com certeza. O humor é uma das muitas estratégias que escolhemos usar. Quando as pessoas riem, eles baixam a guarda e talvez fiquem mais receptivas a se olhar. Através do uso do humor, desafiamos o público a colocar-se no lugar do outro e a sonhar com Bianca de um lugar sem diferença de cor.Você diz que a branquitude  é um privilégio que permite ao indivíduo caminhar sem que ninguém pergunte nada. Muitas pessoas não percebem que este é um privilégio. Essa é a maior prova de segregação racial para você? O olhar branco masculino é o universal. É evidente que a maioria das pessoas brancas não percebe isso porque não precisa. Isso é prova da grande narrativa na qual a raça humana se baseia. Por isso, tentamos criar estereótipos brancos, pois a maioria dos estereótipos são sobre outras raças. Talvez  segregação seja uma palavra forte, mas eu só desejo que os brancos percebam que não devem pensar que estão no direito de decidir se algo é racista ou não. (Foto: Elisa Mendes/ Divulgação) Eu vi uma foto muito linda sua, grávida, em um teatro no Rio. A gestação de alguma forma mudou a força do Black Off para você? Como? Eu decidi não cancelar as apresentações  para desafiar minhas próprias ideias em torno da imagem de um corpo preto grávido. Eu acho que isso deixou o espetáculo ainda mais forte, pois mostra que uma mulher que está grávida pode fazer coisas loucas também. Estou grávida, não doente.O tema do Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac) é "Quem contará a sua história?". Qual é a sua resposta - e desejo - para esta pergunta? Se não contamos a nossa história a partir de nossa perspectiva, a história sempre será manchada com estereótipos e conotações negativas. Eu acho que devemos contar nossa história de todos os ângulos diferentes até inundarmos os livros de história e passarmos a fazer parte da narrativa oficial. Mesmo em 2017, a maioria das análise sobre o continente africano é feita por jornalistas, escritores e pensadores brancos europeus ou norte-americanos. Embora essa visão seja válida e importante, não deve ser a única ...