Deixa minha popa em paz: a liberdade feminina nas roupas no Carnaval

E elas não vão deixar de usar por medo de assédio

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  • Thais Borges

Publicado em 9 de fevereiro de 2018 às 09:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Mauro Akin Nassor/CORREIO

Carnaval é tempo de vestir – e fazer – o que quiser. Não é? Foi com esse pensamento que saí da redação na quinta-feira (8), depois de receber uma incumbência que me deixou reflexiva. No primeiro dia oficial do período momesco, eu tinha que encontrar e conversar com mulheres sobre um assunto que parece ser do interesse da maioria: liberdade na escolha das roupas por elas na folia. 

O contexto local não podia ser outro: em 2018, uma das grandes apostas de música do Carnaval é justamente uma que fala da ‘popa da bunda’ (Elas Gostam, de ÀTTØØXXÁ e Psirico). Há pelo menos duas outras faixas de grandes nomes que trazem ‘bumbum’ no título – uma de Parangolé (Bumbum Carente), outra de Wesley Safadão com participação de Léo Santana (Psiquiatra do Bumbum).  

Mas, para além de qualquer influência musical – e, principalmente, de qualquer participação masculina – há outro contexto. Um contexto em que as regras são delas. Elas mandam, elas escolhem. Elas saem de casa como querem e, se isso significar que a ‘popa da bunda’ vai aparecer, tudo bem. Não é delas, afinal? 

Era bem isso que a maquiadora Sthefany Miranda, 22 anos, e a boleira Deisi Rodrigues, 27, me explicavam, quando as encontrei, perto do Farol da Barra, entre um minitrio e outro do Furdunço. As duas amigas vieram de Duque de Caixas (RJ) para curtir o Carnaval de Salvador e ver a cidade pela primeira vez. Personificando duas das maiores heroínas dos HQs – Batgirl e Supergirl, respectivamente – as meninas vestiam um body e uma saia de tule.  Deisi e Sthefany vieram do Rio para ser empoderadas em Salvador (Foto: Thais Borges/CORREIO) “(Estou) Toda com a bunda de fora”, brincou Deisi, pouco depois que expliquei o motivo da minha abordagem. A ideia inicial era vir sem a saia de tule, apenas com o body. Desistiram. “Ficamos com medo de tarado por aqui, de passarem a mão”. Sthefany, a amiga, conta o que a escolha das roupas significa. 

“Liberdade! É poder vestir o que quiser. Esse é um momento em que as pessoas estão se sentindo mais à vontade. A mídia tem ajudado a deixar muito claro que a mulheres podem fazer o que quiserem”. Nesta sexta-feira (9), quando Anitta puxará o Bloco das Poderosas, seu trio sem cordas, as duas planejam usar o famigerado biquíni de fita isolante que a cantora vestiu no clipe de Vai Malandra, lançado no fim de 2017. 

As duas já viveram momentos de assédio no Carnaval. Inclusive, na própria quinta-feira, flagraram um dito cujo fotografando por baixo de suas saias, no meio do circuito. “Só que, além de tudo, ele era burro, porque deixou o flash. Nós vimos e falamos, ele desconversou e foi embora", diz Deise. Sthefany reforçou que a roupa que vestem não dá direitos a ninguém além delas. “A gente podia estar nua, mas ninguém poderia tocar”. 

Atitude Pouco antes de encontrar as turistas fluminenses, conversei com duas amigas baianas, apaixonadas por Carnaval. Fiquei feliz quando percebi que a visão delas era bem parecida com a das duas primeiras. As estudantes Aline Rocha, 17, e Jamile Falcão, 19, completaram o look de top croppeds e shortinhos com muito glitter. 

Para elas, as músicas que tanto falam sobre bunda não incomodam. O problema mesmo, dizem, são os 'sem noção'. “O que incomoda é a atitude dos homens de se aproveitar da música para mexer com as mulheres”, explica Jamille.  As amigas Aline e Jamile dizem que o que incomoda é a atitude dos homens (Foto: Thais Borges/CORREIO) As duas sempre saem na pipoca e, este ano, já entraram para a imensa e triste estatística das mulheres que sofrem assédio na folia. Aline foi assediada duas vezes no Furdunço de domingo (4). Nos dois momentos, ela contou com o apoio das amigas que estavam por perto. Para Aline, ainda é difícil reagir. Tem medo de que a resposta do assediador seja uma agressão ainda maior. “Mas nunca mudamos a roupa por causa deles. Eles é que vão ter que aprender a respeitar”, dizem as duas. 

A vendedora Caroline Fragoso, 24, às vezes, tem que repreender até os mais próximos. Na quinta mesmo, ela foi para a Barra vestindo um top cropped e um shortinho jeans. “As pessoas dizem que minha roupa me deixa muito nua, mas e daí se eu estiver feliz nua?”, questiona ela. Caroline se sente empoderada não só nas roupas, mas no resto do visual. Usa o cabelo crespo natural e uma maquiagem cheia de brilho. “Tem gente que fala isso ou aquilo, mas a cara é minha”.  'A gente só não pode ser assediada', diz Caroline (Foto: Thais Borges/CORREIO) Ela também me diz que não se incomoda com as músicas que falam sobre a bunda. Acredita que tudo tenha a ver com a percepção das pessoas que escutam. Se as pessoas entenderem que ninguém tem o direito de mexer com ela, não tem problema. “Eu, por outro lado, tenho o direito de mexer a bunda, de mostrar a popa da bunda. A gente só não pode ser assediada”. 

Mas não é só ela que passa por isso. Quando vestiu o body da fantasia de policial com uma meia arrastão, a técnica em enfermagem Simone Silva, 26, também teve que lidar com o julgamento das amigas. E ela não tem problema em admitir: escolheu a roupa pela sensualidade.  'Não é a roupa que define caráter', dizem Thailana e Simone (Foto: Thais Borges/CORREIO) “Minhas amigas falaram: ‘tá muito nua’. Eu falei: ‘e daí?’, e elas disseram que eu poderia receber dedada. Mas se eu receber dedada, vou dar uma cassetada”, disse, aos risos, segurando um bastão que fazia parte da fantasia. A sobrinha Thailana Silva, 17, que a acompanhava, também defendeu o livre arbítrio feminino. “Não é a roupa que define caráter. O assédio acontece todo ano, mas jamais vamos deixar de usar por isso”.

Confortável  O top cropped e o shortinho jeans pareciam ser o look preferido da maioria. A justificativa era sempre essa: bonito e confortável. Foi um dos motivos da escolha da cordeira Daiane da Silva, 27. Com o modelito, ela, que vai sair como cordeira todos os dias de Carnaval, se sente bem. 

“Eu curto e bebo também”, brinca. Ela diz que nunca passou por uma situação de violência que tenha ficado registrada na memória. Já ouviu comentários, mas nunca nada de toque. “Quando acontece, eu dou risada. Vou fazer o quê?”, me perguntou. A resposta, nós duas sabíamos: trocar a roupa é que ela não iria. 

Ela não quis ser fotografada; parecia tímida. Pediu desculpas e foi embora. Depois, quando eu já estava prestes a ir embora, nos esbarramos novamente. Ela me chamou e perguntou novamente onde a foto seria publicada. Expliquei mas, mesmo assim ela não quis. Conversamos brevemente sobre o trabalho – o dela e o meu – e nos desejamos boa sorte. 

Perto dela, avistei duas moças estrangeiras pulando com maiôs cavados e pintadas como quem vai para a Timbalada. Fui falar com elas, mas não deu muito certo. Acho que pensaram que eu vendia algo ou que estava coletando dados para uma pesquisa – acontece muito mais vezes do que vocês podem imaginar. Antes que eu reavivasse o inglês enferrujado ou arriscasse algumas frases em espanhol, elas saíram. 

A vida segue, né? Não deram entrevista, mas o importante mesmo é que estavam felizes – com popa ou sem popa.