Dona Dalva celebra 90 anos com caruru feito com cinco mil quiabos

Festa da fundadora do Samba de Roda Suerdieck inclui exposição e seminário

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  • Laura Fernades

Publicado em 26 de setembro de 2017 às 06:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva
Dona Dalva na casa onde mora há 90 anos, em Cachoeira por Foto: Marina Silva

Confortalvemente sentada no sofá de sua humilde casa em Cachoeira, enquanto conversa com o CORREIO, Dona Dalva Damiana de Freitas conta como estão os preparativos para o seu aniversário de 90 anos, que comemora nesta quarta (27), no dia de São Cosme e São Damião, com um caruru feito com cinco mil quiabos. Mas, entre uma fala e outra, a Dalva do Samba, ou Dona Dalva, é interrompida por quem passa na rua e vê a porta aberta.

“Bença, vó!”, cumprimenta uma estudante. “Deus lhe abençoe, minha filha”, responde Dona Dalva, fundadora de um dos mais tradicionais sambas de roda do Recôncavo, o Samba de Roda Suerdieck. “Dona Dalva! Vai fazer aniversário, né? Parabéns, viu? Muita saúde pra senhora”, deseja um rapaz. A aniversariante agradece com um sorriso e um aceno. “Não sei nem quem é!”, confessa baixinho. “Pareço manequim”, completa rindo, enquanto congela a pose do aceno.

Filha de mãe charuteira e pai sapateiro, tendo o ensino primário como formação, Dona Dalva é a primeira Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), por sua contribuição à cultura popular. Por isso, para celebrar os 90 anos da sambadeira que também integra a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, a UFRB realiza, a partir desta terça (26), uma programação gratuita que inclui duas exposições, simpósio e o esperado caruru.

“Botou na rádio, está no Face... Aí todo mundo está sabendo. Não vai sobrar caruru não, viu?”, garante a repositora de supermercado Bárbara da Silva, 40, mãe de um dos 21 bisnetos de Dona Dalva. “Desde que eu vim ao mundo, foi assim. Minha avó teve barriga de dois”, justificou a aniversariante, sobre a tradição do caruru. “Sempre cortava quiabos com minha avó, brincava de boneca, botava minhas bonecas pra sambar, fazia uma dar ‘umbigada’ na outra e continuo fazendo até hoje”, conta Dona Dalva, que começou a sambar ainda pequena.

Jiló Mais velha entre oito irmãos, Dona Dalva trabalhou como empregada doméstica e com barraca de comida junina para ajudar no sustento da família. A trajetória como sambadeira só se consolidou depois que virou operária da fábrica de charutos Suerdieck. “Tive uma vida muito constrangida, muito sofrida. Minha vida não era alegre, porque para eu criar meus cinco filhos, precisava trabalhar muito. Passei fome? Passei”, conta sem pudor.

Entre a produção de um charuto e outro, conversava com as amigas, contava casos, sorria e chorava ao lembrar das dificuldades da vida. “Tinha dias que eu não tinha nem café pra tomar. Mas ia trabalhar assim mesmo, feliz, contente e satisfeita”, narra, com sua conhecida personalidade guerreira e persistente, retratada recentemente no documentário Dona Dalva - Uma Doutora do Samba, dirigido por Lindiwe Aguiar.

Dona Dalva também lembra que, na falta da merenda, chegou a dividir um pedaço de aipim com as amigas junto com um limão espremido na água, “pra fazer uma garapa”. Quando recebia o dinheiro das férias, “era pra pagar a quem devia”. “Uma vez me entusiasmei e peguei um fogão fiado, mas fiquei oito meses sem receber e não tinha dinheiro pra pagar. Então o fogão ficou encostado, na caixa, só usei quando paguei”, lembra, rindo. O samba de roda de Dona Dalva foi criado quando a matriarca trabalhava na fábrica de charutos Suerdieck (Foto: Caroline Moraes/Divulgação) Mas não só de tristeza era o seu dia a dia no trabalho. No dia em que uma amiga ofereceu jiló no lanche, Dona Dalva não gostou muito da ideia e sua reação foi cantar: “Eu plantei Jiló/Não pegou/A chuva caiu, rebentou/ Cortei miudinho, botei na panela/ Pensei que era jiló e jiló é berinjela/Jiló, ô, Jiló/Venha cá como quiser ô Jiló!/Jiló, ô, Jiló”. Naquele momento, foi plantada a semente do famoso samba de roda que hoje leva seu nome.

“Fazia meu samba, fazia minhas alegrias e todo mundo gostava das nossas atividades. Passei muito sufoco na minha vida, mas superei tudo. Deus me ajudou, fiz tudo por amor e por amor estou até hoje”, agradece Dona Dalva, que é frequentadora do candomblé. “Quando estou no samba de roda, me sinto uma criança de 15 anos”, ri. “Me sinto feliz, realizada”, completa a sambadeira, que criou um samba de roda mirim “para não deixar o samba adulto acabar”.

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Brilho da força Registrado como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2004, o samba de roda foi proclamado Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco, em 2005. Apesar do reconhecimento atual, Dona Dalva conta que nem sempre foi assim.

“No início, o pessoal não queria saber de samba de roda não, porque era samba de negros, pobres, de mulheres que fazem charuto, fedorentas e que bebem. Nunca bebi e a saúde é pifada. Devia ter bebido!”, ri Dona Dalva, cujo nome vem do latim: de albus, aurora, algo claro e brilhante como uma estrela. Nome que vai além da pele e mostra que o brilho pessoal independe da cor.

“O que acho mais interessante na vida de Dona Dalva é que ela está tendo reconhecimento em vida, está dando tempo dela gozar dessa dedicação que sempre teve com o samba de roda”, destaca o fotógrafo Vinicius Xavier, 38 anos, que participa da exposição comemorativa na UFRB com três imagens que fez da sambadeira.

“Dona Dalva representa o que toda matriarca negra da Bahia representa: tradição oral, força da mulher, força de trabalho, da criação da família, da resistência. A mulher negra tem que dar conta da família e de trabalhar, ainda por cima ter tempo de se divertir e afirmar sua cultura através do samba de roda, que traduz sua afro-brasilidade e religiosidade”, completa Vinicius.

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Programação gratuita celebra aniversário A partir desta terça (26), a cidade de Cachoeira (a 120 km de Salvador) será tomada por uma série de atividades gratuitas para celebrar os 90 anos da sambadeira Dona Dalva. Exposições, seminário, missa e caruru fazem parte da programação realizada pela UFRB em parceria com a Casa do Samba de Dona Dalva, o Centro de Memória do Estado da Bahia/ Fundação Pedro Calmon, Identidade Brasil e Ipac-BA.

Com abertura terça (26), às 9h, no Foyer do Auditório do CAHL, na UFRB, a exposição Dona Dalva e Sete Memórias: 90 Anos de Vida e Resistência reúne fotografias de alunos de artes visuais e de outros fotógrafos que têm forte relação com o trabalho de Dona Dalva. Álbuns de família da sambadeira, instalações e imagens projetadas também podem ser vistas na mostra que está em cartaz de segunda a sexta, das 14h às 15h, até 21 de outubro.

“É uma oportunidade de diálogo entre a comunidade e a universidade. Toda uma tradição de oralidade e memória, junto com a contemporaneidade da universidade”, destaca a mestranda do curso de História da Arte Rosângela Cordaro, 54 anos, paulistana que mora em Cachoeira há oito anos e é responsável pelo  projeto de extensão que deu origem à exposição.

Já a exposição 90 Anos de Dona Dalva Damiana de Freitas: Uma História Cantada é composta por artigos que fazem parte da vida da sambadeira, como o traje que usa na Irmandade da Boa Morte e as roupas de baiana que veste no samba de roda. Além disso, uma réplica da máquina de fazer charuto, cedida pela Charutaria Leite & Alves, também pode ser vista na mostra que está em cartaz de hoje a quinta (28), das 9h às 17h, no Nudoc.

A programação fica completa com o seminário 90 Anos: Vida e Obra de Dona Dalva, que acontece terça (26) e quarta (27), das 9h às 17h, no auditório do CAHL/UFRB, e com a missa em ação de graças na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, terça (27), às 17h, seguida de caruru e samba com roda na Casa de Samba de Dona Dalva, a partir das 19h30.

“Dona Dalva é uma expoente na sociedade de Cachoeira e sempre foi uma figura respeitada”, destaca o professor de Antropolgia da UFRB Wilson Penteado Jr., 39, que integra a organização do evento. “Ela é a primeira Doutora Honoris Causa da UFRB, por tudo o que representa para a cultura afro-brasileira no Recôncavo, no samba de roda e na Irmandade da Boa Morte. A universidade está homenageando nossa doutora”, comemora.