Eita trem bão(zim), café c’aipim manteiga sim

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 20 de agosto de 2017 às 04:20

- Atualizado há um ano

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O trem apitava. Eu tremia. Eram cinco da manhã. Eu suava frio. Família me puxava pela mão.  Meu coração: 1) descompassava. 2) ia e voltava. 3) girava feito cata-vento.  Havia gente demais ao redor. A cabeça ribombava. A gente então entrava e sentava no cadeirão do vagão - e minha alma virava turbilhão.

O trem partia. Mas quem partia era a estação. O trem se movimentava. Mas quem se movimentava era a paisagem vista da janela. O trem apitava abrindo caminho. Mas quem se movimentava eram as margens do caminho. Corria boi. Corria boiada. Corria morro. Corriam árvores. Corriam casas. Corriam mulheres com trouxas na cabeça. Corria tudo, e eu parado, e eu mudo. A Coluna Vertebral terá todos os domingos uma ilustração de Carybé. Imagem do Instituto Carybé Perguntava-me: por que eu fico paradão e a paisagem vista da janela corre esse tantão? Família m’abraçava forte,  mas o abraço carinhoso da família  não ajudava muito não. Nenhum de nós saía do lugar, mas a mata virgem ao redor não e minha cabeça mergulhava em confusão-são-são.

Então a náusea fazia do meu peito estação e eu vomitava tripa, coração e tudo mais que comera antes de sair de casa bem cedão – e alguém dizia para outro alguém ‘esse menino não consegue viajar de trem não porque logo que o trem sai do chão ele começa a vomitar e não para mais não’  - ai meu Deus que aflição do cão!

Era muita tripa e muito coração e muito pedaço molhado de pão-com-manteiga que saía de meu bocão e eu me sentia mal do fio do cabelo do cabeção à ponta do dedão e eu jurava, mas não cumpria, que nunca mais viajava de trem não e o trem nunca saía do lugar e a mata virgem corria desvairada, as árvores pareciam fogos-fátuos em frenéticos padedês, e eu vomitava e chorava, chorava e vomitava, num zás-trás, num frenesi, num eterno jato-moto-contínuo.

Cada vez que as rodas do trem repetiam com mais convicção  café com pão manteiga não café com pão manteiga não mais eu vomitava o pão com manteiga  que comera em casa antes de sair pra estação.  O coração parecia ter descido pra barriga, e a barriga parecia ter subido para o lugar do coração. Que danação. Que chateação. Que consumição. [De repente o clarão: a paisagem ao redor parava de correr, parava de fugir – e surgia a primeira estação].

Sentia-me mais aliviado, menos aperreado, mas não por muito tempo não. A paisagem vista da janela logo voltava a correr e tudo dentro de mim entrava de novo em ebulição e mais tranqueira saía do meu bocão. Que aflição, meu são Manuel Bandeirão!

[À noite, já na ribeirinha Mutuipe-Bahia-donde-nasci, na hora de dormir na casa de Tizébailão e Tiacelé, a cama se mexia feito o trem e eu repetia à guisa de oração para acalmar a alma ainda em transe: - Êta trem bão(zim), café c’aipim manteiga sim. Êta trem cão(zaõ), café com pão, manteiga não]. [Então tudo parava, o trem, a cama, até mesmo o coração, e eu dormia até bem tardão e então eu ia tomar banho no riojiquirição, e era a minha redenção].