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Estudante que pedalava do Lobato aos Barris para estudar faz campanha para ir a Portugal


 

Viagens do Subúrbio à Biblioteca Central foram parte da saga de Rogilene Bispo, 28, para entrar em Direito na Ufba. Agora, tenta juntar dinheiro para estudar em Coimbra. Saiba como ajudar

  • Amanda Palma

Publicado em 03/08/2017 às 18:00:00
Atualizado em 17/04/2023 às 09:33:04
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Rogilene Bispo está no 7º semestre de Direito, na Ufba, e conseguiu mobilidade para continuar o curso em Portugal (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Você tem que estudar pra não ser motoboy de luxo”. Essa foi uma das frases que a estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Rogilene Bispo, 28 anos, ouviu durante uma seleção de estágio. Negra, cotista e de família humilde, ela enfrentou todas as dificuldades possíveis para uma mulher que teve uma educação deficitária. Depois de quatro tentativas para conseguir ingressar no curso, e com muito esforço para se manter no ambiente acadêmico, Rogilene conseguiu uma vaga no programa de mobilidade acadêmica e agora vai poder continuar o curso na Universidade de Coimbra, em Portugal, durante dois anos.

A estudante, que está no 7º semestre do curso, precisa de pelo menos R$ 15 mil para conseguir viajar para a Europa e bancar diversos custos, a exemplo da documentação necessária. Para arrecadar o montante, Rogilene está fazendo uma vaquinha online. “Esse dinheiro é inicial. Eu sou cadastrada no programa de assistência estudantil, e eles vão me dar uma bolsa mensalmente para eu me manter lá. Mas preciso comprar a passagem, e o valor não cobre todos os gastos, com documentos, visto, passaporte. São todos os gastos burocráticos de uma pessoa que nunca viajou para o exterior”, conta.

A estudante não gosta de se lamentar das dificuldades que enfrentou ao longo da vida, mas acredita que a sua história de vida pode ser um exemplo para outras pessoas que vivem na mesma situação de pobreza, e que podem ver na educação uma possibilidade para ter um outro futuro.

“Vou continuar buscando oportunidades e abrindo caminhos para outras pessoas que virão. É um caminho muito difícil e doloroso. Eu não tive infância, mas hoje tenho vários livros de Direito que ganhei, que foram doados. Com as políticas públicas, pode ser mais leve pra uma pessoa que vai vir”, opina.

Moradora do Lobato, no Subúrbio Ferroviário, ela teve dificuldades desde a época da escola. Teve ainda que conciliar estudo e trabalho e, muitas vezes, para ajudar nas despesas de casa, ia com as irmãs e a mãe trabalhar na Feira do Rolo, na Baixa do Fiscal. Tudo isso para não cair na “vida mais fácil” do crime, como ela chama.

“É tudo muito tenso aqui. As pessoas nem acreditam que eu estudo Direito. Tenho que mostrar o comprovante. Foi muita dedicação. Eu lutei muito pra passar na Ufba. Tive um ensino muito deficitário. Comparando o ensino público e privado, é muito surreal”, analisa a estudante. Rogilene e a mãe, Gicelda, 58, que lutou para criar as três filhas. Mesmo sem ajuda do marido, que a agredia e inclusive tentou matá-la, conseguiu colocar as três em universidades públicas (Foto: Marina Silva/CORREIO) Dificuldade e superação em casaMesmo com a trajetória difícil, Rogilene e as duas irmãs conseguiram ingressar no ensino superior. A irmã mais velha, Rogiene Batista dos Santos, 32, conseguiu uma bolsa do Prouni e se formou em Administração. Hoje, ela é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP).

A irmã mais nova, Rosângela Maria Bispo, 23, é aluna do curso de Engenharia Ambiental da Ufba e também faz parte de um grupo de pesquisa na faculdade. É com a bolsa que Rogilene e Rosângela recebem que as despesas de casa são pagas. “Elas chegam junto mesmo, graças a Deus”, elogia a mãe delas, Gicelda Maria dos Santos, 58, que hoje está desempregada.

Gicelda nunca teve a carteira assinada e nunca recebeu nem um salário mínimo que pudesse dar conta da criação delas. Mas mesmo assim, se agarrou à fé em Deus para superar a violência doméstica que sofria do marido - ele quase tentou matá-la algumas vezes - e não desistir de dar um futuro melhor às pupilas.

“Se você desiste de um sonho, desiste da vida toda. Nunca teve a oportunidade, hoje essa porta abriu. Eu falei a ela: 'agarre com todas as forças. Olhe pra trás e veja como foi difícil a luta, como a gente conseguiu os frutos dessa luta e não pode pensar em recuar'”, disse a mãe para Rogilene, que agora pretende ir morar em outro país. A estudante e sua bicicleta, com a qual percorria cerca de 15 km para estudar em biblioteca (Foto: Marina Silva/CORREIO) Pedalando até a bibliotecaE para conseguir ingressar na universidade, contou com a ajuda de uma bicicleta. Ela pedalava de casa até a Biblioteca Pública dos Barris - uma distância de cerca de 15 km. Rogilene dividia a bicicleta com as irmãs Rogiene e Rosângela. Como não tinham livros para conseguir estudar, se revezavam para ir até o Centro estudar os livros que estavam disponíveis.

“Cada dia ia uma para a biblioteca estudar. Eu fazia cursinho no Universidade Para Todos, e estudava no Landulpho Alves [em Água de Meninos]. No fim de semana, minha irmã ia também. Ia pedalando mesmo. Passava pelo Comércio, Ladeira da Conceição até chegar lá. Depois comprei uma corrente e um cadeado. A gente prendia no Mercado Modelo para ninguém roubar, porque era o único meio que a gente tinha para ir”, lembra. Depois, as irmãs subiam o Elevador Lacerda e caminhavam até a Biblioteca.

A amiga bicicleta também ajudou dona Gicelda a realizar o sonho de fazer o curso técnico em Enfermagem, que concluiu em dezembro. “Eu sempre sonhei em fazer o curso técnico em Enfermagem. Depois que as meninas começaram a ganhar bolsa na faculdade, aí deu para pagar meu curso e terminar. Foi difícil, mas consegui, graças a Deus”, conta.

O meio de transporte virou xodó. “Essa bichinha me levou em Praia de Flamengo. Serviu para todo mundo. Ia e voltava com minha bicicleta, não tinha como pagar transporte. Tantas vezes saía do curso com pneu furado e tinha que vir arrastando”, recorda Gicelda. "Quando perdi minha vaga, foi terrível; eu queria desistir", diz Rogilene ao lembrar de quando perdeu chance de ingressar na UFRB por não saber que existia segunda chamada (Foto: Marina Silva/CORREIO) Desilusão e volta por cimaInspirada na irmã mais velha e incentivada pela mãe, Rogilene queria entrar na universidade de qualquer jeito. Tentou várias vezes e quando conseguiu entrar no curso de Comunicação Social, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), perdeu a vaga. “Eu não sabia que existia segunda chamada. Só soube meses depois que eu tinha sido chamada. Eu me emociono porque quando eu perdi minha vaga, foi terrível, eu queria desistir. Fiquei muito deprimida”, lembra.

Só que um amigo insistia para que ela continuasse. Então, quando o Enem virou o passaporte para entrar na universidade, Rogilene tentou de novo e conseguiu uma vaga no Bacharelado Interdisciplinar (BI) de Artes, da Ufba. Cursou até o 5º semestre, começou a dar aulas em uma escola perto de casa, se encantou pelo mundo acadêmico, mas ainda não era aquilo que ela queria estudar.

Então, migrou para o BI de Humanidades em 2015 e começou a pegar disciplinas do curso de Direito. “A primeira matéria que peguei foi Direitos Fundamentais. Antes eu não acreditava no Estado, eu não sabia nem o que era Constituição. Nesse momento, me encantei pelo Direito”, explica.

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Sem cessar, sem parar...As dificuldades continuam, mas Rogilene não pensa mais em desistir. “Eu sou negra, mulher, pobre. A área jurídica é muito elitizada. Não tenho ninguém pra botar em escritório. Para o negro galgar os cargos, tem que estar sempre à frente. Então, eu vou ter um currículo de peso. É importante para mim. Para invadir os espaços e mostrar que eu sou capaz de estar ali, de competir de igual para igual. Você tem que estudar cinco vezes mais do que todo mundo”, diz.

O resultado para a seleção no programa de dupla titulação foi divulgado na última quinta-feira (28), e as aulas na Universidade de Coimbra começam em setembro. A estudante só está aguardando a carta. “Me apaixonei por Direitos Fundamentais. Se os direitos básicos do cidadão estão no papel, isso precisa estar garantido. Se o Direito existe, precisa estar na vida das pessoas”, defende. Depois de Portugal, o próximo sonho de Rogilene é se tornar defensora pública.

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Veja o relato da estudante:

"Nasci na periferia do subúrbio ferroviário de Salvador, de origem humilde sempre estudei em escolas públicas, enfrentando todas as dificuldades e limitações do ensino público, como aulas canceladas por diversas vezes, dentre os motivos, falta de água, merenda escolar, falta de professores, e a intensa violência na comunidade sob a conseqüência da guerra do tráfico.

Sou a segunda filha de três, minha mãe é doméstica, nunca teve a carteira assinada, meu pai é feirante, semianalfabeto, dependente químico desde seus 14 anos. Mesmo assim, quando a falta de oportunidade tentou barrar meu futuro, eu criei minhas próprias oportunidades. Durante o Ensino Fundamental e Ensino Médio, eu já me incomodada com as circunstâncias sociais do meio em que eu morava, minha mãe mesmo sem estudo e presa num casamento cheio de abusos e violência, sempre me ensino que só através dos estudos conseguiríamos mudar nossa triste realidade, nos conscientizando que “o livro é um passaporte”, no qual posso afirmar, é uma ferramenta que transforma vidas, transformou a minha.

Apesar de uma infância tão difícil, agradeço a Deus pela força em prosseguir, que deu a minha mãe, por nunca desistir de mim e minha duas irmãs, pelo contexto desestruturado em que ela vivia, poderia ter nos dado para alguma outra família nos criar, e ainda assim, não o fez. Mesmo com todo sofrimento, nunca lhe faltava um sorriso no rosto, diante do que sofria ao lado do meu pai. Eu me questionava: como uma pessoa pode oferecer um sorriso tão doce vivendo uma situação tão precária?

No 3º ano do Ensino Médio, descobri um cursinho pré-vestibular comunitário, num bairro vizinho, incentivada por minha irmã mais velha, que sempre foi muito dedicada aos estudos, desde criança tinha paixão pelos livros. No entanto, a idéia de entrar num cursinho não saiu de minha cabeça, mas não poderia me inscrever porque não tinha o dinheiro de transporte para o deslocamento, mas eu não poderia deixar que esse obstáculo me impedisse de progredir. Juntei todos os recursos que eu tinha uma bicicleta velha, e assim, começava minha jornada para ingressar na Universidade Federal da Bahia.

Foram três anos de tentativas frutadas, aprovada na 1ª (primeira) fase e reprovada na 2º (segunda fase), vestibular esse com uma prova de alto nível e cruel com os alunos que estudaram a vida toda em escola pública, onde mal têm aulas de português e matemática, que dirás professores dispostos a enfrentar a violência e o tráfico dentro das escolas, evidenciando-se um ensino deficiente e precário. Nessa altura, minha irmã mais velha já colhia frutos da sua dedicação aos estudos, pois pontuou uma excelente nota no Enem e conseguiu uma Bolsa Integral pelo PROUNI para o curso de Administração de Empresas.

Eventualmente, descobri que no vestibular anterior fui aprovada no curso de comunicação na UFRB, mas infelizmente de forma tardia, tinha 50 vagas e meu nome saiu na segunda chamada (eu fiquei no 51º lugar). Tomada por uma profunda tristeza e dor de ver meu sonho escapado das minhas mãos, decidi que não mais tentaria ingressar no ensino superior. No ano seguinte fui convencida por um primo a prestar novamente o ENEM, para o Bacharelado Interdisciplinar (BI), uma proposta nova da UFBA pelo REUNI. Fui aprovada e cursei 05 semestres do BI de Artes, mas não me sentia completa, apesar de ter obtido, através deste curso, a experiência de sala aula e, assim, minha paixão pela Educação. Eu pensei muito na questão de que eu ia demorar muito mais tempo pra me formar, faltava somente um ano para colar grau no BI de Artes, foi uma decisão difícil, mas precisava descobrir qual seria minha real função na sociedade.

Seguindo conselho de um amigo da faculdade, e encorajada por ele, prestei novamente o ENEM, e migrei para o curso de BI de Humanidades. Ao ver minha turma do BI de Artes formar fui tomada por uma profunda triste e incerteza, mas, com o passar do tempo, fui compreendendo que precisava passar por todo esse processo de mudança para minha construção como pessoa, e, sobretudo, como uma agente social.

Ao migrar para o curso do BI de Humanidades, ingressei na área de concentração de Estudos Jurídicos, com intuito de obter respostas para alguns questionamentos que até então me incomodavam, como a questão do real papel do Poder Judiciário, do Acesso à Justiça e da garantia dos Direitos Fundamentais. Em 2015 me formei e ingressei no curso de Direito noturno, começando uma nova fase de minha vida, na esperança de construir um Direito mais justo e acessível a todo e qualquer cidadão, sem distinção de classe social ou cor.

Eu e minhas irmãs tivemos que começar a trabalhar muito cedo, aos sete anos de idade, com uma infância dura e sem perspectivas. Sonhar em ter o que comer no dia seguinte era o que nos restava. Todos os domingos nós íamos vender água e lanche na Feira do Rolo, mais conhecida como “Feira do Pau”, localizada na Baixa do fiscal, onde o clima do tempo era quem definia se nós teríamos o que comer no jantar.

Quando chovia as vendas eram quase zero, toda mercadoria era trazida para casa, íamos e voltávamos empurrando o carrinho de mão pesado, trazendo até hoje em minhas mãos as marcas desses tempos sofridos. Muitas vezes, minha mãe chegou a desmaiar de fome e cansaço, enquanto meu pai passava o dia se drogando.

Eu sempre acreditei que era possível ultrapassar as barreiras da pobreza e da fome, me vejo como um exemplo de superação para as pessoas que se identificam com minha história, e que não desistam dos seus sonhos, tudo é possível com estudo, perseverança e determinação.

Atualmente estou cursando o 7º semestre do Direito da UFBA, minha irmã mais velha, Rogiene Batista (31), é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade (FEA-USP), no qual durante o ano passado concluiu o Mestrado, aprovada com grande mérito, e teve sua dissertação indicada para o Prêmio "Melhor Tese" e "Melhores Dissertações", do CRC (Conselho Regional de Contabilidade) de São Paulo, e recentemente teve a publicação do seu artigo intitulado Risk management and value creation: new evidence for Brazililian non-financial companies, no periódico Applied Economics Incorporating Applied Financial Economics, classificado como A1 pelo Qualis-CAPES. Minha irmã mais nova, Rosângela Maria (23), cursa Engenharia Ambiental na UFBA, após finalizar o curso técnico no IFBA, e minha mãe conseguiu terminar seus estudos, e se formou em Técnica de Enfermagem, no ano de 2016".

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