Fitas do Bonfim desaparecidas

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 12 de janeiro de 2018 às 05:15

- Atualizado há um ano

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Nenhum de vocês, leitores, viu alguma vez uma fita original do Senhor do Bonfim, nem mesmo em fotografia, muito menos em museus ou em alfarrábios de família. E se alguém viu me conte. Há mais de uma década me esforço em encontrar um exemplar que seja, não me conformo que as fitas da devoção do orago tenham desaparecido sem deixar vestígios. É um mistério o seu sumiço. Já segui muita pista falsa, até o museu de Petrópolis me foi indicado, não tinha fundamento. Vi uma similar, de 1823, com imagem do menino Jesus, ou São João, não consegui identificar, em registro de abandono de uma criança na Roda dos Expostos, no arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

Originalmente chamadas de medidas de santo, em função de seu cumprimento de 47 cm, o correspondente à medida do braço direito da imagem do Senhor do Bonfim, eram confeccionadas com largura entre 5 e 7 cm e usadas penduradas no pescoço, ou em volta do chapéu, indumentária do dia a dia dos baianos e, em tempos de festa, imprescindível. Fabricadas em seda, ou cetim, com impressão da imagem do santo em alto relevo e costurada com fios banhados em ouro, representavam uma razoável receita para os cofres da irmandade. A do Senhor do Bonfim, especificamente, já era comercializada desde 1792, segundo os registros existentes (encontrados num livro termo de compromisso por Luiz Geraldo Urpia Freire de Carvalho), provavelmente antes disso, a conferir no futuro. A questão é saber se a medida de santo do Senhor do Bonfim foi a primeira, já que sabemos que não foi a única. É possível. Os fabricantes e distribuidores das medidas de santo anunciavam nos jornais do século XIX a sua venda com imagens do Senhor do Bonfim, mas também de Nossa Senhora das Candeias, São Gonçalo do Amarante, Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Purificação, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora dos Mares de Amaralina, Santo Antônio da Barra. Todas as irmandades e confrarias da Bahia adotaram as medidas de santo e, como já dito, a sua receita cobria parte dos custos da festa. Não podemos afirmar que a do Bonfim tenha sido a primeira em função da medida do braço que inspirou o seu comprimento, pois não sabemos se as outras medidas de santo tinham comprimentos diferenciados. Fica a dúvida até surgirem indícios mais consistentes. A partir da década de 1930, as medidas de santo do Bonfim, então de fabricação menos onerosa, popularizadas pela mídia, deixam de ser um enfeite e objeto de devoção exclusivo da festa para ser um adorno de casa, do carro ou do negócio.

Não há qualquer referência dos cronistas da festa e nem da mídia, na cobertura dos eventos, à fita amarrada no pulso, de fabricação barata, e de mau gosto, pelo menos até o final da década de 60, quando os órgãos oficiais de turismo interferem no planejamento da festa. E tenho para mim que foi o governo quem criou a mística da fita amarrada com três nós e que estimularia o pedido ao santo de três desejos. Um mito semelhante ao dos três desejos da Fontana Di Trevi e de muitas outras fontes pelo mundo afora. A indústria do turismo, em todo o planeta, sempre explorou os três desejos como um de seus melhores apelos. O final desta história é que a medida de santo passou a ser uma fitinha vulgar, hoje exaltada como um amuleto devocional. Em todo caso, e apesar das transformações, o povo lhe confere uma energia muito positiva, nos seus atos de fé, e isso é que importa. Energia que contribui para fortalecer a devoção ao padroeiro de fato da Bahia, que o de direito (sem nenhuma razão e direito) continua a ser São Francisco Xavier.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras