Gil, filhos e amigos celebram 40 anos de Refavela na Concha

Show Refavela 40 acontece na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, sábado (23)

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  • Laura Fernades

Publicado em 18 de setembro de 2017 às 06:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paola Alfamor/Divulgação
Anfitrião da noite, Gilberto Gil canta músicas como Refavela, Babá Alapalá e Sítio do Pica-Pau-Amarelo por Foto: Daryan Dornelles/Divulgação

O cantor, músico e produtor carioca Bem Gil, 32 anos, não era nem nascido quando o pai, o cantor baiano Gilberto Gil, 75, lançou o emblemático disco Refavela, em 1977. Mas, diante da força do álbum que completa 40 anos este ano, se viu motivado a juntar os amigos para revisitar o repertório do disco central da trilogia iniciada com Refazenda (1975) e finalizada com Realce (1979). O resultado pode ser visto no  show Refavela 40, que será apresentado na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, sábado (23), às 19h.

O clima despretensioso dá uma ideia da apresentação que parece uma reunião de família e amigos que têm forte relação com o disco considerado um dos mais africanos de Gil, já que é inspirado em sua viagem à Nigéria. Além do anfitrião, o show Refavela 40 conta com as vozes de Céu, Moreno Veloso, filho de Caetano, e Maíra Freitas, filha de Martinho da Vila, acompanhados por Ana Cláudia Lomelino e Nara Gil, filha mais velha de Gil.

O time de músicos inclui Bruno Di Lullo, Domenico Lancellotti, Thomas Harres, Thiagô de Oliveira e Mateus Aleluia, filho do cantor e compositor baiano Mateus Aleluia. Além deles, a banda conta com o próprio Bem, idealizador, diretor artístico e musical do projeto que garante que a ideia sempre foi não dar trabalho ao pai, além do necessário.

Por isso, apenas no último dia dos ensaios com a banda, Gil apareceu no estúdio e perguntou: “e aí, filho, o que é para eu fazer?”, lembra Bem, rindo. “Já falei, pai. Você vai fazer Refavela, Babá Alapalá e outras músicas que seguiu fazendo de lá pra cá”, respondeu. Além dos dois clássicos, Gil interpreta a música É, que ficou de fora do disco Refavela e foi resgatada em novo arranjo para o show, e outras canções que não fazem parte do álbum, como Sítio do Pica-Pau-Amarelo.

“Não queria que meu pai tivesse que decorar uma letra, nada disso”, justificou Bem, ao ressaltar que a proposta do show é prestar uma homenagem despretensiosa. “Inclusive não chamo nem de show, estou chamando de ritual. A sensação é que a gente está meio no estúdio, em casa, no terreiro e até no show, já que tem pessoas assistindo. Tem sido muito gostoso”, garante.

Gil concorda e reforça que o show é uma grande celebração à vida, porque “é feita pelos filhos e pelos filhos dos amigos.”. “É uma grande família musical, artística, existencial brasileira. É uma celebração nesse sentido, como um ritual”, diz. “Gosto muito do show, até porque são meninos novos fazendo releituras não rigorosas e ao mesmo tempo fiéis ao que foi imprimido no disco, mas colocando aqui e ali novos elementos, influências, pequenos detalhes de reinterpretação”, completa.

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Negritude Depois da viagem à Nigéria, país africano que visitou para participar do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, na década de 1970, Gil voltou inspirado em cantar a negritude. Assim, Refavela reflete esse universo e inclui músicas emblemáticas como Babá Alapalá, um dos primeiros sucessos da cantora e atriz Zezé Motta; e Que Bloco é Esse, composição de Paulinho Camafeu que virou hino do Ilê Aiyê e foi gravada pela banda O Rappa.

Outra música que está no disco é Patuscada de Gandhi, composta por Gil depois que o cantor voltou de Londres, em 1972, e veio passar o Carnaval em Salvador. Ao encontrar o Afoxé Filhos de Gandhi reduzido a poucas pessoas, “sem massa humana na Avenida”, Gil conta que a primeira coisa que fez foi se inscrever no bloco para “engrossar o caldo” e depois fez a música.

Por esses e outros motivos, o cantor diz que apresentar Refavela 40 em Salvador é muito importante. “A Bahia talvez seja, de todas as terras do Brasil, a que mais tenha absorvido a cultura negra. Esse universo da presença negra no Brasil e no mundo tem sido sempre elemento da minha elaboração musical poética. Desde que eu tomei consciência da importância disso, do fato de ser de descendente de negros”, conta Gil.

“São signos para os quais eu fui despertado naquela época”, continua o cantor, destacando os desdobramentos da experiência africana em sua vida. “Foi um aprofundamento maior da consciência brasileira e da importância do negro, mas não só do negro, de toda a sociedade brasileira”, resume Gil com sua voz suave. Capa e contracapa de Refavela, álbum clássico de Gilberto Gil Crítica/Refavela: Você já foi à Nigéria, nego? Não? Então vá! Hagamenon Brito*

Gilberto Gil, 75 anos, é mais do que um cantor e compositor de música popular. É um pensador, também, expondo ideias sobre ancestralidade e questões sociais, científicas, afetivas e filosóficas em muitas de suas canções. A sua percepção do mundo e do seu tempo transcende a música como a de nenhum outro compositor de sua geração no Brasil. Formada por Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979), a chamada trilogia Re é um bom exemplo do Gil músico e pensador ao mesmo tempo. Em Refazenda, disco que reúne pérolas como Ela, a faixa-título, Tenho Sede (Anastácia e Dominguinhos), Pai e Mãe, Jeca Total, Retiros Espirituais, O Rouxinol e Lamento Sertanejo (parceria com Dominguinhos), ele retomou suas raízes rurais e relembrou o sertão usando novos instrumentos e tecnologias, como o violão ovation e novos pedais. 

Em 1977, depois de uma viagem a Lagos, na Nigéria, para participar de um festival de arte e cultura negra, o cantor mesclou a sua ancestralidade africana (Balafon, Babá Alapalá) com baianidade (Ilê Ayê, Patuscada de Gandhi) e brilhou em questões afetivas (Sandra) e rítmicas (o reggae em Norte da Saudade e a versão suingada da bossa Samba do Avião, de Tom Jobim), sem esquecer de aspectos existenciais (as lindíssimas Aqui e Agora e Era Nova) e das contradições sociais envolvendo o negro e o pobre brasileiro em um país que crescia e sofria sob a ditadura militar: "A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH". Um apartamento do BNH, hoje, seria um imóvel do programa Minha Casa, Minha Vida. Álbum de conscientização de sua herança afro, Refavela é a obra-prima da trilogia Re, que seria fechada com Realce, onde Gil cantava a beleza e o empoderamento em ritmo de disco funk na faixa-título e seguia a louvar o velho e o novo.

*Editor e crítico musical do CORREIO