Homem de uma nota só

por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 4 de fevereiro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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[Ando pensando em me tornar meu próprio mecânico – o que implicará tratar-me e curar-me sem pagar ladravazes planos de saúde. Outro pensamento a me navegar: aprender a fazer tricô e crochê, o que talvez torne a minha vida financeira menos deplorável.]

Assumi muito cedo minha homossexualidade – entre 7 e 8 anos – e, por tabela, senti de maneira precoce a dor e a delícia de ser pária diante da família e do mundo. Ensimesmei-me em vez de socializar-me.  Envolvi-me com os fantasmas da culpa e me foquei  em escarafunchar o motivo que me fizera diferente dos irmãos e dos colegas de escola. A sensação de estranhamento em relação a estar em  mundo que não parecia meu fermentou a gênese do pequeno escritor em busca insaciável de resposta  para pergunta irrespondível: - Por que sou assim e meu irmão, não? [Hoje, no futuro desse passado que me engendrou eu sei que sou assim e milhões de homens e mulheres mundo afora o são e o são com justo orgulho – mas eu sou eu, pessoal e intransferível].

Meu pensamento nunca foi técnico, matemático ou físico. Ler Jorge Amado,  Graciliano Ramos e Castro Alves me interessava mais do que enfiar o dedo nas vaginas das meninas e nos cus dos meninos; do que saber a causa de as  lâmpadas queimarem, dos relâmpagos e trovões relampejarem e trovejarem; ou o que fazia o sol surgir toda manhã no horizonte.  Ao passar por oficinas de automóveis e ver homens imundos de graxa imersos em decifrar os enigmas de motores fundidos e voltar a fazê-los funcionar a sensação era de indiferença, talvez nojo – ou seria fascinação? Algo me encantava quando eletricistas chegavam lá em casa e faziam funcionar a velha geladeira Gelomatic cuja maçaneta dava choque, ou ressuscitava o caquético rádio Mullard. 

Tornei-me homem não dual, homem de nota só: escrever – e não escrever qualquer coisa e de qualquer maneira – e sim escrever coisas que demonstrem o meu desassossego em estar em mundo que não é meu – nem nunca será.

[Por volta dos anos 1980, li livro que quase me revirou pelo avesso – Zen e a Arte de Manutenção das Motocicletas, de Robert M. Pirsig. Foi-me epifania. Mas percebi: era tarde demais para mudar].

Momento de contrição: ver minha mãe, exímia costureira, forjando, a partir de pedaços de pano, vestidos, camisas, calças e roupas que eu, meu pai, irmãos e os clientes dela sentíamos prazer em vestir. A maestrina – alfinetes apoiados entre os lábios, fita métrica no pescoço, óculos na ponta do nariz, tesoura em punho – pedalava a máquina de costura como se pedalasse a própria vida. 

Minha mãe era amorosíssima, mas nunca me passou o pathos de pessoa pacificada, zen. Mas quando a via nessa faina diária imaginava-a com a mente quieta e o coração tranquilo.

[Também quero ter a mente quieta e o coração tranquilo – e talvez esteja no tricô e no crochê e não na literatura – essa azáfama de egos disparatados em constantes enfrentamentos – a minha possibilidade de ter a mente quieta e o coração tranquilo]. [Pelo andar da carruagem, terei dois ofícios logo, logo: o de escrever e o de tricotar.]