Meu bloco, minha vida: conheça histórias de quem é apaixonado por um bloco de Carnaval

Tem gente que fez até tatuagem

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  • Thais Borges

Publicado em 22 de janeiro de 2018 às 05:40

- Atualizado há um ano

. Crédito: Roberto Luís espera o ano todo pelas Muquiranas (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Se alguém perguntar ao técnico em Radiologia Roberto Lima, 40 anos, qual foi o pior dia de sua vida, ele não vai nem precisar pensar muito. Foi no início do ano passado, quando sua mãe decidiu arrumar seu armário. Nessa arrumação, a matriarca jogou fora quase todas as fantasias com as quais ele desfilou no bloco As Muquiranas ao longo de 15 anos. 

“Até minha primeira fantasia, da Branca de Neve, ela jogou fora. Ela vinha me alertando para arrumar e, aí, quando chegou o dia, fui até no lixo procurar resgatar. Encontrei um catador de lixo com meu chapéu de mosqueteira na cabeça. Tive que deixar para lá, né?”, conta, hoje, aos risos. Na coleção, restou a do ano passado e duas ou três que estavam perdidas em outros locais do quarto. 

Quem conhece Roberto já não estranha mais: esse amor por As Muquiranas começou desde que saiu pela primeira vez, convidado por um colega. Na época, ele estava procurando um bloco ‘normal’ para sair – por ‘normal’, ele define os blocos em que homens não saem vestidos de mulher. “Ele perguntou se eu tinha coragem e eu disse que era meu sonho, mas não queria ir sozinho. Ele me disse que sozinho não ficava, porque ali é uma família”. 

Hoje, ele parece um adolescente se declarando para a primeira namorada. Só que ele não é adolescente e não se trata de uma namorada. A futura esposa, inclusive, já até se chateou. Ela propôs uma viagem durante o Carnaval, junto com a filha de cinco meses dos dois. Ele negou – acha que viagem pode vir em qualquer momento do ano. As Muquiranas não.   A mãe de Roberto jogou quase todas as fantasias no lixo: 'Foi o pior dia de minha vida' (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Passo o ano todo esperando. É o meu momento, uma coisa única. Não me vejo em outro bloco. É muito diferente, é uma energia, uma coisa inexplicável, um amor. Várias emoções num dia só. Eu choro, dou risada, bate ansiedade, fico sem comer (nos dias que antecedem). Tem gente que fala que sou louco, mas é como torcer por um time de paixão mesmo”. Para o diretor de As Muquiranas, Luciano Paganeli, essa ligação tão forte com o bloco é uma realidade comum, entre os foliões. E tem uma explicação bem razoável: é justamente porque os associados não participam só do desfile na Avenida, mas da vida nas Muquiranas. A palavra final nas decisões pode até ser da diretoria, mas os rapazes opinam, discutem, participam... 

E, para completar, é um amor que passa de um para o outro. Avô, pai, neto, sobrinho, amigos – um chama o outro. O próprio Paganeli assumiu, com os irmãos, o legado deixado pelo pai, Lindolfo Araújo, o velho Charita, que criou As Muquiranas há 53 anos. 

“A gente não perdeu a essência de fazer ficha, cadastro. Tudo isso se perdeu nos blocos tradicionais e a gente continua. E eles são muito fanáticos, têm um amor incondicional. Tem cara que chega aqui com 4, 5 cartões na mão. Fazem de tudo para não deixar de sair, porque também é um boco da classe trabalhadora”. 

Tatuada De amor a autônoma Idelci Schettini Cabral, 53, entende. O dela é tão forte que passou do plano especial para a própria pele – em novembro do ano passado, Idelci tatuou a patinha do bloco Camaleão, onde desfila desde 1982, no ombro. Logo abaixo do desenho, a frase '40 anos de Camaleão’, que são comemorados este ano.  Em novembro, Idelci tatuou a patinha do Camaleão (Foto: Acervo pessoal) A história é antiga. Ainda adolescente, via as primas saírem no bloco, então recém-criado. Quando completou 18 anos, ganhou o abadá de presente do pai. De lá para cá, coleciona histórias que deixariam qualquer filme água com açúcar ou livro romântico com inveja. A única diferença era que o objeto de amor era sempre o Camaleão. 

Até mesmo o amor romântico gira em torno disso. Encontrou um parceiro – o segundo marido – tão apaixonado pelo Camaleão quanto ela. Se conheceram por acaso, mas, depois, descobriram que apareciam até em fotos do passado, enquanto vestiam mortalhas e abadás do bloco. 

Quando se casaram, em 2013, o bolo tinha dois noivinhos apaixonados pela folia, acompanhados da pata do ‘Camaleão’ em pasta americana. Para completar, a frase: ‘Chicleteiro eu, Chicleteira ela’, eternizada na música que, na voz de Bell Marques, já embalara muitos Carnavais do casal. O pedido não poderia ter sido diferente: foi feito dentro do bloco, com o marido ajoelhado pedindo para oficializar a união de seis anos.  Quando Idelci e o marido, Humberto, se casaram, até o bolo teve a patinha do Camaleão (Foto: Acervo pessoal) “Foi minha tia que fez e era uma surpresa. Todo mundo sabia, menos eu”, lembra. Nos anos em que morou em Portugal, ela costumava voltar para Salvador, no verão, simplesmente para sair no Camaleão. Em 1984, desfilou com a perna engessada. Em outro, ainda no puerpério – tinha dado à luz ao primeiro filho, em 4 de janeiro de 1992. No dia 6 de fevereiro daquele ano, estava na Avenida. 

“Não me dê nada, nem o dobro, nem o triplo do valor (do abadá) em troca. Não abro mão do Camaleão. No dia que acabar, como diz meu marido, acabou o Carnaval da Bahia para a gente. Quando você está lá, é de chorar. É indescritível. Meu filho caçula, de 17 anos, saiu no ano passado e se encantou. Virou e disse: ‘agora eu entendo você”. 

Diretor do Camaleão, Joaquim Nery acredita que o Camaleão ajuda as pessoas a extravasar e buscar a felicidade. “A gente ouve constantes relatos de pessoas que vão fazendo amizade, dizendo que conheceu marido, esposa, no Camaleão. O bloco construiu uma legião de fãs motivado pela história. São 40 Carnavais e sempre fomos uma referência”. 

Mais Belo dos Belos O estudante de Fisioterapia Valter Júnior, 30, lembra de como os olhos brilhavam quando via a saída do Ilê Ayê, do Curuzu. Nascido e morador do bairro até hoje, lembra que, aos seis anos de idade, o pai o vestiu com retalhos de tecido do bloco afro de um primo.  Ainda criança, Valter foi levado pelo pai para ver o Ilê pela primeira vez (Foto: Reprodução/Betto Júnior) “Subimos aquela Ladeira o Curuzu e, daí para cá, aquela paixão pegou. Fui crescendo, tomando um amor muito maior, com consciência do que as letras estavam falando e descobrindo a militância negra. Sou do candomblé e ainda tem essa ligação. Juntou tudo e virou quase outra religião”, brinca. 

A música do Ilê Ayê está presente na vida dele até nas coisas mais simples – seja tocando numa festa de aniversário, seja enquanto lava roupas. Ao longo do ano, a indumentária com a qual desfila, também continua fazendo parte de sua vida. Com os tecidos do Ilê, costuma fazer camisas, calças, objetos. “É o manto sagrado. Eu mesmo costuro”. No ano passado, decidiu sair, pela primeira vez, nos Filhos de Gandhy. Desfilou no domingo e, na terça-feira, já no percurso, decidiu voltar para casa. Descansaria para a saída do Ilê, mais tarde. “Eu não tenho nem palavras. Cada ano é uma emoção diferente”.  Valter costuma incorporar os tecidos do Ilê em sua vida cotidiana (Foto: Marina Silva/CORREIO) Para Vovô do Ilê, presidente e um dos fundadores do bloco, a paixão de quem desfila no ‘Mais Belo dos Belos’ nasce na discussão racial. “O Ilê tocou num ponto que as pessoas tinham receio de tocar. Isso foi fortalecendo esse sentimento de negritude e, hoje, as pessoas se veem representadas. Você consegue, através do Carnaval, fazer esse resgate da história do povo negro”. 

Nos Filhos de Gandhy, o próprio presidente, Gilsoney de Oliveira, entende a paixão. Antes de chegar à direção do afoxé, passou por uma história que começou aos 13 anos de idade. Já dura há 32. “Para poder ingressar no Gandhy, tem que ter paixão, porque o bloco tem a parte religiosa e cultural. Esse é o conceito do Gandhy, que carrega a grande marca de um líder pacifista”. 

Segundo ele, há associados que saem, ininterruptamente, há 40 anos – o afoxé completou, em 2018, 69 anos de existência. “Toda minha vida dediquei ao Gandhy. Existem três coisas importantes em minha vida: Deus, minha família e os Filhos de Gandhy”.