O show do BaianaSystem não acaba nunca

Por Siron Nascimento

  • D
  • Da Redação

Publicado em 13 de dezembro de 2017 às 12:01

Rola uma história de que a Clarice Lispector foi na estreia da Maria Bethânia no Teatro Opinião. Foi na sexta, ficou sentadinha, assistiu ao show e foi embora. No sábado, voltou, assistiu e foi embora. No domingo, após assistir ao show pela terceira vez consecutiva, fez diferente. Foi até o camarim, entrou e disse para Bethânia:

- Esse show nunca acaba!

Fui ao Circo assistir ao show do Baiana (apesar de assistir não ser bem a palavra). Confesso que estava reticente, a histeria que levou ao esgotamento dos ingressos me remeteu a Los Hermanos. Pensei: mais um show com fãs que vão pra mostrar que conhecem todas as musicas e disputar quem canta mais alto.

Errei. O show do Baiana não permite qualquer experiência que não seja se entregar de corpo e alma na teia sonora tecida pela aranha Russo. Todos ali estavam amalgamados, presos, entrelaçados; não havia espaço para subjetividades: era tudo uma coisa só: amor.

O grave pesado, as letras que retratam o jovem brasileiro pobre que trabalha duro, sofre na mão da polícia, vê seus direitos diminuírem a cada Jornal Nacional, e melodias das principais referências de matriz africana da música pop dos anos 80 pra cá, fazem com que seja impossível não se prender nessa teia.

O disco Duas Cidades, realizado após experimentações empíricas, é o resultado antropofágico, tão tipicamente brasileiro.

O ritmo envolvente, autêntico e representativo dispersa individualidades. Não à toa, o palco é escuro, não dá pra saber bem quem tava ali tocando. Mesmo o vocalista, muitas vezes, postava-se no fundo do palco pra sumir igual aos 4000 insanos-ninguéns que participavam do show.

Russo Passapusso entendeu a essência do carnaval: “o batuque toca a pipoca, pipoca é pouco, é pipoco, é soco na cara”. Engana-se quem entender isso como alguma forma de violência: é só amor. Carnaval é mistura de fluidos, fluxos e referências, desordem coletiva que dá sentido às diversas alteridades presentes nas massas: “na multidão, na muvuca, to na prontidão, to na luta, tem truta, sem treta, na letra, amarelo, tem branca, tem pardo e preta”. Em Calamatraca, ele explica tim-tim por tim-tim.

O furacão, no Circo puxado por BNegao e o Russo, parece um rodinha punk aos olhos de quem vê de longe, acredito. Mas não é. Não é uma catarse violenta coletiva; é o rodopio do saci: traquinagem, brincadeira, tumulto, confusão.

Russo entendeu a dor dos nossos tempos: o excesso de individualidade. É tanta exposição do “eu”, que virou quase uma obrigação demonstrar como cada sujeito é feliz, invencível e tem uma vida incrível, expondo-a nas redes sociais, fazendo lives e caçando curtidas. A roda do Baiana é o esgotamento do projeto moderno de afirmação da subjetividade.

É apresentada assim a solução para os males da pós-modernidade: vamos ser um só, unidos pela música potente, de grave forte, que quebra barreiras interpessoais e une tudo pelo amor. Esqueça-se de você mesmo, dos seus problemas, das suas dores, e seja só mais um na multidão, na teia terapêutica do Baiana.

É terapia do som.

Texto publicado originalmente no Facebook e republicado com autorização.

Siron Nascimento é Relações Públicas, mora no Rio de Janeiro e é fã do BaianaSystem.