Os bastidores da Galeota

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 29 de dezembro de 2017 às 08:29

- Atualizado há um ano

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 Na manhã de 4 de janeiro de 1891, um grupo formado por saveiristas e carpinteiros, convocado pela Irmandade, desde a virada do ano, se reuniu na praia da Boa Viagem no propósito de discutir a construção de uma galeota para transportar a imagem do Bom Jesus dos Navegantes na tradicional procissão marítima do primeiro dia do ano, realizada desde 1841, segundo indícios que tive oportunidade de narrar no meu livro Festas Populares da Bahia. Fé e Folia. O grupo decidiu construir o barco, traçou metas e prazos e a Irmandade assumiu a tarefa de arrecadar os recursos necessários para a empreitada.

O que motivou a reunião foi o estresse do fim do ano da comissão organizadora das festas, quando teve indeferido pela Marinha o pedido para a cessão do escaler da corporação, como de praxe, para o transporte da imagem do Bom Jesus dos Navegantes pelo recém-chegado a Salvador, capitão de mar e guerra Antônio Pompeu C. Cavalcanti, novo inspetor do Arsenal.

A negativa obrigou os organizadores a improvisar um barco de última hora, mas, acima de tudo mexeu com os brios da turma do mar, que na dita reunião decidiu não mais depender de “favores” do governo.

A arrecadação de recursos e a construção da Galeota correram em paralelo. Quatro jornais abriram subscrições públicas: Estado da Bahia, Diário de Notícias, Pequeno Jornal e Correio do Povo. O primeiro arrecadou 617 mil réis, quase 20% do total. Ao mesmo tempo a Irmandade e os saveiristas e proprietários de vapores promoveram a captação de esmolas, porta a porta, rendeu 149.980 réis. Trabalhadores das fábricas da Cidade Baixa e os guardas da alfândega doaram o que puderam, os primeiros contribuíram com 50 mil réis, os guardas com 30 mil. A arrecadação total foi de 3,3 contos de réis para uma despesa de 3,7 contos de réis, uma dívida a pagar de 400 mil réis que teria sido maior se não fosse o trabalho voluntário de alguns operários.

Mãos à obra, o mestre construtor João Francisco Maia comandou os trabalhos, com o auxílio do carpinteiro João Ricardo Borges e do calafate Procópio Francisco de Souza; os três, pode-se dizer, foram os pilares da construção da Galeota que contou também com um marceneiro e um dourador para o acabamento. Manoel Dias, tesoureiro da Irmandade, cuidou das finanças, detalhando no balancete cada item de custo e cada serviço prestado sem ônus. Construída com madeira de cedro e jaqueira, pregada com pregos franceses e decorada com folheado a ouro e cortinas de seda, a Galeota foi apresentada ao público no estaleiro do Bogarinho em 27/12/1891.

Na ocasião, um dia de chuvas torrenciais, o vigário da Freguesia da Penha, Ludgero dos Humildes Pacheco, abençoou a embarcação e em seguida a multidão empurrou o barco até o mar, entre vivas e aplausos, sob os acordes das filarmônicas Carlos Gomes, Lyra do Apolo e São Braz, em clima de festa. Na virada do ano, a Galeota batizada como “Gratidão do Povo”, em referência à movimentação popular e subscrição pública, estreou na procissão, rebocada pelo vapor Vasco da Gama pertencente a Agostinho Dias Dimas.

No largo da Boa Viagem, embandeirado e iluminado a gás, o ano de 1892 nascia entre vivas do povo ao Senhor dos Navegantes; no entorno fogos cambiantes, balões subindo ao céu e os então chamados jogos campestres divertiam a população, esta, orgulhosa de ter construído um original nicho para a procissão marítima do padroeiro. Orgulho também para as gerações futuras que sem entender direito de que se trata, mas, imbuídos de uma singular energia, mantiveram a tradição, sem risco de se quebrar essa corrente de fé.