Peça com Jesus travesti é suspensa por liminar em Salvador

Espetáculo seria encenado às 20h desta sexta (27) no Espaço Cultural da Barroquinha

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  • Carmen Vasconcelos

Publicado em 27 de outubro de 2017 às 19:27

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

O espetáculo teatral  O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que integra a programação do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC)  teve sua apresentação suspensa no final da tarde dessa sexta (27). A decisão partiu de uma liminar da 12ª Vara Cívil de Salvador, concedida pelo juiz Paulo Albiani Alves, e impediu que a Fundação Gregório de Mattos(FGM) , administradora do Espaço Cultural da Barroquinha, onde a peça seria apresentada, a exibisse.

Protagonizado pela atriz, professora e ativista Renata Carvalho,  que é transexual, a montagem questiona o que aconteceria se Jesus voltasse ao mundo na pele de uma travesti. O espetáculo – que chegou a ser exibido na noite de quinta (26)  – é uma mistura de monólogo e contação de histórias em um ritual que traz Cristo ao tempo presente, na pele de uma travesti.

Na montagem, histórias bíblicas conhecidas são recontadas em uma perspectiva contemporânea, propondo uma reflexão sobre a opressão e intolerância sofridas por transgêneros e minorias em geral. A identidade travesti é elemento chave do espetáculo, que busca a transformação do olhar diante de identidades marcadas pelo estigma e pela marginalização. A direção é de Natalia Mallo,  artista  nascida na Argentina e residente em São Paulo, que tem desenvolvido projetos de colaborações internacionais para trabalhar na interseção de arte, educação e sociedade.

Procurada pela equipe de reportagem do CORREIO, a protagonista e a diretora do espetáculo  afirmaram que só se manifestariam no sábado (28), depois que se informassem melhor sobre a questão. Vale salientar que a peça também foi proibida no Sesc Jundiaí (SP), em circunstâncias muito parecidas com as de Salvador, por liminar concedida pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, atendendo a um pedido que já vinha sendo articulado há alguns dias por grupos  religiosos.

De acordo com o presidente da FGM, o diretor teatral Fernando Guerreiro, 51 anos, a liminar chegou estrategicamente depois das 17h, impossibilitando qualquer movimento no sentido de derrubar a decisão. “Só na segunda-feira poderemos fazer algo para impedir a continuidade desse movimento absurdo de censura”, disse Guerreiro. Com 40 anos de carreira, o diretor se disse chocado com a iniciativa que fere princípios democráticos. “A classe artística e a sociedade precisam frear essa movimentação de censura que tem repercussões gravíssimas, não só para a classe artística, mas para a liberdade democrática”, completa.

Para o curador do FIAC, Felipe Assis, a ideia de uma peça como essa não é profanar. “Mas lembrar que as religiões são espaços de amor e não de ódio”, completa, ressaltando que a figura de Cristo foi um dos maiores divulgadores da tolerância.

Em nota, a organização do festival classificou a decisão como "tentativa de censura" e lembrou que a apresentação do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu  na quinta-feira (26) teve ingressos esgotados e "uma plateia lotada, atenta e afetiva, que aplaudiu entusiasticamente todas as artistas envolvidas na peça". "Para a equipe organizadora do FIAC Bahia, a ocorrência constitui-se uma censura explicita à liberdade de expressão, que tenta impedir a reflexão sobre temas importantes para toda a sociedade. É também uma afronta ao direto dos artistas de ocuparem espaços de visibilidade em nossa cidade, exercendo a liberdade de criar e se expressar a partir de narrativas múltiplas", diz a nota oficial.

Surpreso com a decisão, o presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Garbelotto, afirmou que, numa análise preliminar e superficial, a primeira impressão é que a decisão foi mal fundamentada e pautada num caráter de censura. “A liminar estabelece uma multa absurda, especialmente para um cenário artístico local. Não sou conhecedor de religiões, mas acredito que as pessoas possuem liberdade de acreditar num Cristo que melhor se aproximar da sua fé, seja ele cisgênero ou transgênero”, completou.

Na decisão, o juiz destaca que as partes autoras "se sentiram ofendidas quanto à sua ideologia religiosa cristã" e isso teria violado seus direitos. A liminar afirma que a laicidade do Estado significa que se deve "proteger amplamente a liberdade religiosa", na espera pessoal e também pública. "Um Estado não deve tenta impedir a vivência religiosa do povo, especialmente o Cristianismo, com uma ação hostil ao fenômeno religioso e a tentativa de encerrá-lo unicamente na esfera privada", afirma o juiz.

Segundo ele, não se pode permitir que se eliminem "símbolos/crenças religiosos mais tradicionais do povo, com narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes". Ele determina ainda que caso a liminar não fosse cumprida, a multa diária seria de R$ 1 milhão, em favor das partes autoras.

Clique e leia a decisão na íntegra

Em nota, a Fundação Gregório de Mattos (FGM) comentou a decisão. Leia o texto divulgado:

Por conta de determinação judicial emitida no final da tarde desta sexta-feira (27), a Fundação Gregório de Mattos (FGM) suspendeu a apresentação do espetáculo "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" de hoje, no Espaço Cultural da Barroquinha. A peça, dirigida por Natalia Mallo (SP), integra a programação da décima edição do Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC) Bahia 2017, que ocupa diversos espaços em Salvador, entre 24 e 29 de outubro, com peças de teatro, espetáculos de dança, performances, críticas e atividades formativas. A FGM e a produção do Festival já estão tomando as providências jurídicas cabíveis.