Por que 'eles' se transformam em 'elas' durante no Carnaval?

Flavia Azevedo é mãe de Léo

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 10 de fevereiro de 2018 às 18:20

- Atualizado há um ano

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(Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que cada um e cada uma se veste e/ou fantasia como bem entender e que ninguém tem nada com isso)

Mas eu sempre achei curioso que em qualquer Carnaval deste país, em qualquer pedaço de chão onde a ordem é "se joga, maluco!", em qualquer oportunidade de fantasia, tem homem  vestido de... mulher. E que existem blocos de Carnaval em que milhares (ou centenas, ou dezenas) de homens saem juntos vestidos de... mulher. E que, em qualquer saidinha que você der no Carnaval, vai ver homem vestido de... mulher.

Tô falando de bofe. Do cara que é "macho", hétero, "pegador". Do "homem tradicional" (muitas vezes homofóbico, misógino etc e tal) que, quando chega o Carnaval, escolhe se vestir de quê? De mulher! Isso sempre me intrigou. Tô dizendo que me intriga o que é diferente de incomodar. (Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós). Mas, você há de concordar: é no mínimo curioso o fato de que, na hora de se "liberar", o "homem tradicional brasileiro" escolha se vestir de... MULHER!

(Observe: eu circulo bastante e nos bloquinhos LGBTs é onde menos se vê homem vestido de mulher)

Desejos reprimidos? Homossexualidade latente? Transexualismo inconsciente? Essa é a interpretação mais óbvia. Mas mesmo que esse possa ser o caso de um monte deles (claro, né?), vou desviar desse caminho porque chover no molhado não é a minha e não tô aqui pra tirar ninguém do armário. Por mim, sai quem quiser e há bem mais o que pensar sobre esse movimento coletivo de bofes que viram bailarinas, fadinhas, freiras e odaliscas. Todas meio putas. Todas bem descaradinhas.

Eles ficam mais abobados do que de costume, já percebeu? Uma parte deles completamente obcecada por mostrar (oferecer?) a bunda. E por mais "heteros" que garantam ser, faz parte da fantasia dar em cima de outros homens. No caso, dar em cima dos que estão "vestidos de homem" mesmo. Nem que seja pra em seguida dizer "tô brincando, eu sou macho, olha ali minha mulher, poha". Ainda criança, vi uma turma do Muquiranas (bloco tradicional de homens travestidos, em Salvador) praticamente atacando meu pai. Outra vez, a vítima foi meu sobrinho (ainda adolescente) que não achou graça nenhuma no marmanjo de batom que insistia em dizer que ia namorar com ele. Mas era brincadeirinha. Toda vez é. Ah, tá.

Bom, não importa. O que eu quero saber é: de onde vem essa mulher que, coletivamente, esses caras interpretam? Porque se um dia eu resolver sair "de homem" no Carnaval, só vou conseguir interpretar o homem que está em mim. E quanto mais eu beber, mais honesto será esse recorte, mais "real" será essa fantasia. Porque é assim que a vida é. É assim que as catarses funcionam. A nossa exacerbação, fantasia, "brincadeira", sempre entrega mais do que pensamos mostrar. Eu nunca me fantasiei de homem. Pra mim, ser homem não é uma fantasia. Talvez (só talvez, pensando aqui) porque eu já viva, cotidianamente, os aspectos da "masculinidade" que me interessam. Simples assim.

É que há um "feminino" reprimido em todos eles? Talvez sim. Um feminino negado, guardado, sufocado que explode - meio patético, não podemos negar - na liberdade carnavalesca. Uma explosão de purpurina que me diz: há uma arma que cada macho tradicional aponta para a própria cabeça enquanto diz "seje homi, rapaz". Um peso. Um gabarito onde deve ser difícil caber. Fato é que  a carne do "homem tradicional brasileiro" quer festejar de saias e batons, fazendo disso piada. O feminino que há neles só se manifesta como piada, vejam só que interessante. Brincadeira mais séria. Que bandeira, meu irmão!

(Fora isso, uma última questão: por que, quando se vestem de mulheres, esses homens incorporam exatamente o tipo de mulher sobre quem eles sempre dizem: "mulher minha assim não"?)