Primeiro a barriga depois a moral, cara pálida!

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 5 de novembro de 2017 às 09:26

- Atualizado há um ano

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Honorina aprendeu desde pequena: menina que andava na linha o trem matava. Moradora de casa modesta às margens da Estrada de Ferro Nazaré – que, entre 1875 e 1967, ligou Nazaré das Farinhas, nas franjas de Salvador, a esta Jequié-Bahia –, se jogou de cabeça, tronco e vagina na vida dura que a vida sempre é e sempre será. Obreira a partir dos 6 anos (1949) fazia pequenos adobes e telhas na olaria do pai. Enrabichou-se aos 8 (1951). Casou aos 10 (1953). Pariu aos 11 (1954). Pai e mãe fizeram gosto: o marido de 30 era trabalhador de salário curto, mas certo, e vivíamos em mundo no qual sempre vinha em primeiro lugar a barriga e só depois a moral – o dramaturgo alemão Bertolt Brecht consagrou em frase imorredoura esse status quo da raça humana. [Hoje em dia há certa caterva querendo crer que moral põe mesa. Põe nada. Quem põe e tira mesa é o estômago. Ponto].

[o-fim] Conheci na manhã de 30 de outubro de 2017, tramoias do destino, essa Honorina do  parágrafo anterior. Em minha ida mensal à ‘farmácia popular’ – na Praça Ruy Barbosa, centro nervoso desta urbe – sempre encontro velhos e velhas patuscas com os quais proseio com prazer – é como se proseasse comigo mesmo daqui a uma ou duas décadas. Ao entrar, sentei e levantei o pescoço. Meus olhos se cruzaram com os olhos baços de velha cabocla de cabelos escorridos e pintados de preto-quase-azul, que, imaginei, pelo vincado da pele, estaria perto dos 100 anos.

Parece ter adivinhado o meu pensamento, e me inquiriu:  – Michamo Honorina e vô lipreguntá:  quantusano usinhô acha quieutein? Desprevenido, arrisquei: - 80! Ela não se ressabiou, e disparou: - Tein 74, mas tein idade prasê mainhá dusinhô!

Retruquei: - Não tem. Tenho 63. A senhora teria me parido com 11 anos. Ela, alteando a voz: - Oxe! Pois num foi cum 11 qui tive meu primêro fi!!!??? Pasmei-me – e o jornalista que me habita captou a folha corrida de dona Honorina nos quinze minutos seguintes.

Declarações + relevantes de dona Honorina,  que morrerá no anonimato, pois neste texto a identifico com nome fictício: 1. – Ia pro cinijiquié levada por esse homi mais véi. No mei do firme, pegava no sono e drumia no mei das perna dele. 2. Gustava do chêro di fumo i di suó dele. 3. Si mãe e pai recramava? Oxe, e  num era nhamãe mermo quimiimpurrava pra ele? Honorina não quer morrer. Mas o tempo, esse orixá sem moral alguma, lhe corrói sem pena as entranhas: sofre de osteoporose, de ‘fartadimemora’ (toma ‘remédjo pru cérbio’) e as dobras adiposas do corpo escapolem pelos descosidos do vestido decotado preto – o que lhe dá jeito de corpo algo tosco. [Ah, sim, na hora de assinar o nome no recibo da receita médica tira o polegar do coldre, passa em tinta preta, e se honoriniza].

[o-meio] [Honorina teve mais 16 filhos com Roque – nome inventado. Nos dois últimos, gêmeos, ‘udoutô  miemborcô ’ – e parou. O marido a trocou por outra, tão menina quanto ela o fora, com a qual produziu + dez criaturinhas].