Riqueza submersa 

Naufrágios na Baía de Todos os Santos têm história e potencial econômico; Especialistas recomendam uma melhor fiscalização e um plano de desenvolvimento do turismo sustentável

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  • Murilo Gitel

Publicado em 3 de dezembro de 2017 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Um dos sítios de naufrágio mais importantes da Baía de Todos os Santos é o do barco holandês Utrecht (foto: Lúcio Távora / Agência Tempo)

Há mais mistérios sob as águas cristalinas e mornas da Baía de Todos os Santos (BTS), sede da Amazônia Azul, do que sonha nosso vão conhecimento. Os seus mais de 1.200 km2 de extensão abrigam um rico patrimônio cultural submerso: os sítios de embarcações naufragadas neste litoral desde o século 17. Esse verdadeiro tesouro arqueológico possui um imenso potencial turístico, científico e histórico, o que demanda políticas públicas para a sua preservação.

Mergulhar nas águas da BTS representa também uma imersão na história. Por exemplo: você sabia que o Farol da Barra, um dos principais cartões-postais de Salvador, foi construído por causa do naufrágio do Galeão Sacramento em 1668? 

E tem mais. Sobre um recife a cerca de 350 metros do farol encontra-se o material remanescente dos vapores Germania e Bretagne. O primeiro pertencia à Hamburg American Line e foi construído em 1870, na Escócia. Fabricado todo em ferro, o navio tinha 100m de comprimento e acomodações para 370 passageiros. Naufragou ao deixar o porto da capital baiana, em 1876. Naquele mesmo ano, foi lançado ao mar o vapor francês Bretagne, da Société Générale des Transports Maritimes à Vapeur (SGTM). 

Depois de operar por 27 anos no Mediterrâneo e na rota Europa-América do Sul, o navio de ferro dotado de 87,95m de comprimento chegou à Bahia em 1903. “Ao sair do porto de Salvador com destino a Marselha, carregado de 10 mil sacas de café, teve seu leme danificado, ficando à deriva e soçobrando sobre os destroços do vapor Germania. Conta-se que o capitão, diante da perda do navio, suicidou-se com um tiro”, relata o estudo preliminar “Patrimônio Cultural Subaquático da Baía de Todos os Santos”, desenvolvido entre 2015 e 2016 por pesquisadores do Observatório de Riscos e Vulnerabilidade Socioambientais da Baía de Todos os Santos (ObservaBaía), grupo da Universidade Federal da Bahia que criou um Mapa de Naufrágios da BTS (http://www.observabaia.ufba.br/mapa-dos-naufragios-da-baia-de-todos-os-santos/). O documento tem o objetivo de contribuir para a preservação do patrimônio cultural subaquático da região.

Combate  Outra história fascinante é a do chamado “Combate Naval de Itaparica”, protagonizado em 28 de setembro de 1648 por três naus: as holandesas Utrecht e Huys Van Nassau; e a portuguesa Nossa Senhora do Rosário. Na ocasião, a esquadra holandesa teria conseguido flanquear o Nossa Senhora do Rosário em ambos os bordos. Ao perceber que iria sofrer uma abordagem, o comandante da fragata portuguesa decidiu atear fogo em seu paiol. Resultado? A manobra suicida afundou tanto o Utrecht como a embarcação lusitana, gerando centenas de mortes. O Huys Van Nassau, danificado, foi capturado pelos portugueses em Itaparica, sendo posteriormente recuperado e rebatizado como “Fortuna”.

“O que possivelmente levou o comandante do navio português a afunda-lo é que este transportava documentos da inteligência naval que cairia em mãos dos inimigos holandeses. Estas naus se encontram afundadas na entrada da Baía de Todos os Santos em estado de boa conservação e preservação de seus equipamentos”, destaca o professor do Departamento de Antropologia da UFBA, Carlos Caroso, que coordena o grupo. 

Preservação O ObservaBaía mapeou um total de 18 naufrágios ocorridos na BTS – distribuídos por 14 sítios - entre 1627 e 1980. Estes locais são visitados regularmente por mergulhadores do Brasil e do exterior, que acabam atraídos pelas boas condições da água e acessibilidade típicas da nossa baía.  De acordo com o grupo, que conta com antropólogos, geólogos e arqueólogos, “os sítios arqueológicos de embarcações naufragadas possuem um incomensurável potencial científico, visto que guardam informações e artefatos de importantes momentos da história da Bahia e do Brasil, mas que nunca foram corretamente estudadas e divulgadas. Infelizmente, esses sítios arqueológicos encontram-se ameaçados por fatores de ordem natural e humana, e precisam ser preservados”.

Entre as ameaças estão processos erosivos e correntezas, que aumentam a degradação nas áreas submersas desprotegidas, além disso, há a depredação para retirada de suvenires das embarcações e a poluição marinha.

Ecoturismo Uma vez preservados, os sítios arqueológicos de naufrágios na BTS representam uma oportunidade para o desenvolvimento do ecoturismo. A operadora de mergulho Dive Bahia é uma das empresas que oferecem a possibilidade de mergulhadores iniciantes ou profissionais visitarem navios naufragados.

“Há opções de visitação tanto para iniciantes, onde estão os naufrágios mais rasos, e outros que requerem mergulhadores com mais experiência, como o do Galeão Sacramento, que está na região do Rio Vermelho, mar aberto, com mais de 30 metros de profundidade”, diz o diretor da empresa Mateus Harfush.

Segundo Harfush, as escolas de mergulho de Salvador lutam atualmente pela criação do Parque dos Naufrágios, entidade que teria como atribuição contribuir para a preservação desses sítios, além de estimular o turismo. “É o que Recife tem feito nos últimos anos. Hoje é a capital brasileira do mergulho. Aqui, infelizmente, ainda falta vontade política”, lamenta.

Algumas das histórias dos naufrágios na BTS

Galeão Santíssimo Sacramento (1668) : Ao tentar entrar na Baía de Todos os Santos no entardecer do dia 5 de maio, o navio português colidiu com a crista do Banco de Santo Antônio, sucumbindo aos ventos tempestuosos do quadrante sul. Entre os cerca de 500 passageiros estava o general Francisco Corrêa da Silva, que assumiria o Governo-Geral do Brasil, mas acabou morrendo no acidente. Salvaram-se apenas 70 pessoas. Por causa desse naufrágio foi construído o Farol da Barra.

Fragata Santa Escolástica (1700) :   A embarcação foi construída no Arsenal da Marinha da Bahia, tendo naufragado em sua viagem inaugural. Ela iria combater o bloqueio árabe à colônia portuguesa em Mombassa, Quênia. Afundou após colidir com Banco de Santo Antônio, ainda na saída da BTS.

East Indiaman Queen (1800) :  Operava para a famosa Companhia Britânica das Índias Orientais quando naufragou por incêndio acidental em 9 de julho de 1800 no porto de Salvador,  matando 30 soldados, 6 passageiros e 70 marinheiros.

Maraldi (1875) : Navio de propulsão mista (vela e vapor), o vapor Maraldi seguia viagem vindo de Buenos Aires com uma carga de couro e lã destinada à Antuérpia. Contudo, ao entrar no porto de Salvador para abastecer-se de carvão e víveres, acabou impelido pela forte correnteza, vindo a naufragar em um dos recifes na região do Forte de Santa Maria.

Cavo Artemidi (1980) :   era um cargueiro de bandeira grega, que afundou junto ao Banco de Santo Antônio quando saía do Porto de Salvador em 25 setembro de 1980. O navio havia carregado 16.800 toneladas de ferro-gusa no Porto de Vitória com destino a Brighton na Inglaterra, e fazia escala para combustível no porto de Salvador. Ao sair do porto, o navio foi levado pelas fortes correntezas e bateu primeiramente no Banco da Panela, tendo que aguardar a enchente da maré para que fosse reflutuado. Após ter sido reflutuado, mas com água aberta na casa de máquinas, o cargueiro foi arrastado com a vazante da maré, vindo a bater, e por fim naufragar, sobre o flanco oeste do Banco de Santo Antônio.