'Tragédia anunciada', diz ex-professora de escola em que bebê se afogou

Pais de ex-alunos relatam negligência; funcionários citaram acúmulo de funções

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  • Da Redação

Publicado em 16 de fevereiro de 2018 às 21:59

- Atualizado há um ano

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Uma ex-professora da Escola Construir, onde um bebê de 2 anos e 9 meses morreu afogado na manhã desta quinta-feira (15), no bairro do Cabula VI, em Salvador, afirmou que o óbito de Victor Figueredo de Andrade Santos foi uma “tragédia anunciada”. Sem querer ser identificada, a pró contou ao CORREIO que trabalhou durante oito meses no local - entre maio e dezembro de 2017 - e que diversas irregularidades ocorriam no dia a dia da unidade de ensino. Uma delas era justamente o portão próximo à piscina, pelo qual Victor passou para chegar à água - segundo ela, era comum o acesso ficar aberto.

De acordo com ela, as irregularidades já começaram com a troca de cargo. Ela diz que inicialmente foi chamada para ser auxiliar de professora, mas que atuava como professora regente. “O portão que fica perto da piscina sempre ficava aberto. Eles colocavam o cadeado só para dizer que estava fechado, mas vivia aberto", reforçou.

A professora contou que uma das motivações para pedir o isolamento da área era a preocupação com a proliferação de mosquitos. "A gente também pedia para fechar a piscina por conta da dengue. Também havia um acúmulo de funções por parte dos funcionários na escola. Tinha gente que cuidava da cozinha, do financeiro e ainda atendia o portão”, adicionou a ex-professora.

Além disso, diversas crianças tinham acesso à área da piscina, de acordo com a fonte. “Geralmente as mais velhas. Com os bebês isso nunca tinha acontecido”, comentou. Victor chegou a ser socorrido para a UPA do Cabula, mas não resistiu (Foto: Júlia Vigné/ Reprodução/ CORREIO) Mensagem de alerta Um e-mail enviado pelos funcionários em agosto, aos gestores, que o CORREIO teve acesso, já pedia alterações na piscina e na divisão de tarefas pelos funcionários. Dentre as queixas dos funcionários estava o somatório de funções. “O dia a dia da Escola Construir tem sido muito difícil para todos os funcionários. Isso se deve ao acúmulo de funções por parte de alguns funcionários, à falta de suporte para outros, entre outras coisas”, diz um trecho da mensagem. Uma preocupação com a piscina também é manifestada no e-mail.

“Estamos todos aflitos com a questão da piscina. A preocupação é o ambiente propício ao desenvolvimento da dengue. (...) Seria importante providenciar uma lona pra cobrir a piscina se ela não for ser utilizada nos próximos tempos, isso já poderia reduzir riscos de algo acontecer”, continua o texto. Trecho do e-mail enviado por funcionários e professores da Escola Construir em agosto de 2017 (Foto: Fac-símile / Júlia Vigné / CORREIO) Victor era uma das 11 crianças que a ex-professora cuidava. Ela conta que eram oito da turma dela e mais três que ela tinha que absorver, porque não tinham atividades pedagógicas disponíveis no turno."Ele (Victor) era mais independente. Sempre queria ficar fora da sala dos bebês e a gente levava ele para a sala dos maiores, que tinha televisão. Ele amava assistir televisão. Acabava que a gente cuidava dele de forma compartilhada", comenta."Ele era uma das crianças mais obedientes. A gente pedia e ele escutava. E ele era muito amado e tinha um olhar de doçura especial. Lamento muito o que ocorreu", complementa a ex-pró de Victor. Acúmulo de funções era ponto de reclamação de funcionários de Escola Construir (Foto: Fac-símile / Júlia Vigné / CORREIO) Piscina O descuido com a piscina aparentemente não vem de hoje. Jana Santana, 29, moradora do Cabula VI e mãe de Maria, 2, conta que pensou em matricular a filha na escola, mas que desistiu.

"Eu fui lá no final do ano passado para ver se colocaria minha filha para estudar. Fiquei com medo da piscina. Perguntei se tinha proteção ou cuidados especiais por conta da piscina e eles não deram boas respostas", lembra a mãe de Maria. "A piscina estava descoberta com crianças passando de um lado para o outro. Fiquei com medo e decidi não colocar ela lá", conclui Jana.Já Juliana Silva chegou a matricular sua filha na escola. “Há três anos minha filha estudou nessa mesma creche e o motivo de tirá-la de lá foi justamente a falta de proteção, porque não havia nada que impedisse que qualquer criança chegasse no local. No ano passado, estive lá novamente para matricular minha filha. Quando entrei, percebi que a situação piorou, depois de uma reforma, quando eles abriram uma porta na cozinha que dá acesso à piscina", conta a mãe da ex-aluna. "Quando questionei à funcionária sobre a porta, ela respondeu que as crianças não passavam por ali e que há muita atenção. Não fiz a matrícula porque não senti segurança alguma”, completa Juliana.Homicídio culposo Os responsáveis pela morte de Victor, filho de Bruna Bispo e André Andrade, podem ser indiciados por homicídio culposo (quando não há a intenção de matar). De acordo com a delegada Lúcia Jansen, titular da 11ª Delegacia (Tancredo Neves), há a possibilidade de o inquérito identificar mais de um responsável. 

“Não há dúvidas para a Polícia de que houve negligência. Nós temos que concluir o inquérito, fechar o procedimento para mandar para a Justiça. Mas há a possibilidade de ter mais de um responsável. A lei estabelece o dever de cuidado. Houve negligência porque não atentaram à guarda dessa criança, que estava sob responsabilidade desses. No momento, estamos concluindo as investigações para identificar quem é o responsável”, explica a delegada. 'Tragédia anunciada', diz ex-professora de escola em que garoto se afogou (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Até agora, seis pessoas foram ouvidas, incluindo o diretor, a professora de Victor e mais quatro funcionários da escola. Os pais ainda não prestaram depoimento. Eles enterrarão o corpo do bebê neste sábado (17) em Morro do Chapéu, Centro-Norte do estado.

A escola já foi periciada pela polícia técnica e por engenheiros. A delegada aguarda o resultado das análises. “O que vai nos ajudar é o laudo da engenharia, que vai nos dizer se a escola está adaptada às regras para o funcionamento da creche. A questão agora é a responsabilidade”, destaca a delegada.

A perícia irá ajudar no entendimento de como a criança teve acesso à piscina. “Vamos ver se a criança escorregou, porque o local está em obras, tem resto de material de construção. Lá existe uma cerca que não é próxima à piscina e existia uma porta que dá acesso à piscina. Por descuido, ela ficou aberta”, relata. Escola Construir foi periciada na noite desta quinta-feira (15), quando foi constatada a obra próxima a piscina (Foto: Almiro Lopes/ CORREIO) Escola fechada As aulas da Escola Constuir, no Cabula VI, só poderão ser retomadas após a conclusão do inquérito policial. Uma nota de pesar foi publicada pela unidade em sua página do Facebook. No comunicado, a creche lamentou a morte da criança e afirmou que se disponibiliza para dar “todo o suporte necessário neste momento”.

Tal posicionamento foi confirmado pela advogada Vanessa Souza, que esteve nesta sexta-feira (16) na 11ª Delegacia para acompanhar o depoimento da professora e de duas funcionárias. “Ainda não há nada conclusivo. O que eu posso adiantar é que a creche se põe à disposição para a investigação”, adiantou a advogada. Advogada da escola diz que instituição está dando suporte à família (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Vanessa destacou a presença da cerca de segurança em volta da piscina e afirmou que esse é um dos objetos de investigação: saber como a criança teve acesso à piscina e o motivo dela estar sozinha. A advogada ainda afirmou que a escola conta com um funcionário responsável pela parte externa, mas que eles não sabem informar se estavam presentes no momento em que Victor caiu na piscina.

A Escola Constuir conta com seis a oito funcionários por dia para tomar conta de 25 crianças. A advogada ainda afirmou que Victor ainda estava com vida quando foi socorrido na piscina. “Foram dados os primeiros socorros e ele veio a óbito na UPA”, citou. 

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Dicas para segurança da criança na piscina  Com todo esse episódio, as mamães e os papais ficam logo alertas com a piscina. Mensagens em WhatsApp alertam aos cuidados que os pais precisam ter com as crianças na água. Para isso, o CORREIO falou com o subcomandante do grupamento marítimo, Capitão Luciano Alves, que explicou que existem cinco passos essenciais para o cuidado da criança próximo à essas áreas. Essas dicas são recomendadas pelos Bombeiros da Bahia e para a Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático. 

“São cinco dicas: atenção, guarda-vida, urgência, acesso e sucção. As iniciais das palavras formam a palavra águas. Se essas cinco dicas forem utilizadas de forma correta, há grande probabilidade de não ocorrer afogamento no local. É preciso todo um cuidado especial porque afogamento é a segunda maior causa de morte de crianças entre 1 e 9 anos. A maior parte ocorre em rios, lagos, lagoas e piscinas.”, disse.

Confira as principais recomendações: Atenção - É necessária atenção constante com as crianças quando elas estiverem próximas a ambientes aquáticos. A preferência é que ela não saia do alcance da distância de um braço. Isso porque minutos são suficientes para a criança ter alcance ao local, cair em uma piscina e a pessoa não visualizar. Depois de  Guarda-vidas - Essa é uma recomendação expressa para piscinas coletivas: clubes e condomínios em que as pessoas usam a piscina com o fim recreativo. Há a necessidade de ter um guarda-vidas no local. Ainda não existe a obrigatoriedade deles, mas é de extrema importância ter esse profissional atento na piscina e pronto para dar socorro.  Urgência - As pessoas que trabalham ou moram em locais com piscina precisam saber atender as pessoas, em caso de urgência. Em um caso específico desse, talvez quem fizesse o primeiro contato após a retirada iniciasse manobras de reanimação no próprio local e iria conseguir reanimá-la.  Se você levar a vítima de imediato à unidade hospitalar sem fazer esse primeiro socorro, ela pode ficar até 15 minutos sem respirar. A partir de 5 minutos sem oxigenação no cérebro, já há a possibilidade de danos irreversíveis, uma morte cerebral, uma parada cardiorespiratória e a pessoa pode ficar em estágio vegetativo, caso sobreviva. Acesso - O acesso à piscina tem que ser extremamente controlado. Dois mecanismo são comumente utilizados e, se forem utilizados simultaneamente, poderão ser quase infalíveis: a cerca de proteção com material adequado e uma tela de proteção sobre a piscina. Pode usar um ou outro, mas o recomendado é utilizar os dois simultaneamente, para diminuir o risco da criança ultrapassar as duas barreiras. Sucção - Outro problema frequente com piscinas é a sucção de cabelos, que acabam afogando crianças. O indicado é evitar a utilização das piscinas quando as bombas estiverem ligadas, ou evitar ligar a bomba quando o local estiver sendo utilizado pelas crianças. Existem bombas e ralos apropriados que evitam a sucção.