Três almas boíssimas me abduzem no crepúsculo

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 9 de setembro de 2017 às 21:20

- Atualizado há um ano

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[Ando cansado de ser, estar, permanecer, ficar, petrificar: desconstruo-me de maneira mansa e gradual quando estaco no mesmo lugar e não consigo me desgrudar deste lugar, e meus pés parecem acorrentados em poste qualquer deste lugar]. São seis da tarde e no rádio da vizinha – hora do Angelus – ouve-se soar Ave Maria qualquer.  Traz-me platitude. A lua cheia, amiga, zomba-me: - O que faz aí aprisionado, moço-velho? Por que continuar em lugar que parece caixa de sapatos sem sapatos dentro?

Debruçado à janela, enxergo o incomum: pessoas não voltam do trabalho, vizinhas faladeiras não tagarelam, crianças não brincam de pega-pega. A cena que ora se  move e me move: três vacas magras e esguias passeiam sobre os paralelepípedos e seguem em direção ao Sobocó da Ema. São brancas. Não parecem intimidadas. Andam garbosas e altaneiras. Indago-me, algo zonzo, sobre aquele séquito inusitado: - Será que voltam das compras em bazar ordinário no qual não acharam nada que lhes assentassem bem?  Ou, solidárias, foram visitar amiga doente?  Ou passeiem por passear e curtem a paisagem enluarada? A Coluna Vertebral publica todos os domingos uma ilustração de Carybé  Imagem do Instituto Carybé Num vapt-vupt eletrizante todo o resto da paisagem é sugado pelo nada. Em mundo ermo de pessoas e carros existimos apenas eu – ainda na janela – e as vacas que trotam sem olhar para trás. Num estalo, resolvo segui-las. Corro ao quarto, calço tênis esbodegado, enfio moletom ibidem ibidem – está frio –, desço as escadas aos pulos e, num átimo, incorporo-me ao grupo e formamos quarteto singular.

As vacas não rechaçam a minha presença. Mugem baixinho quando roço meus dedos no dorso delas. Resolvo nominá-las: Ricarda segue mais à frente. Terência me ladeia à direita. Tomásia vem mais atrás. Trotamos juntos até a cidade e as gentes acabarem. Por trás de cancela quebrada e tombada, surge trilha enlameada e as minhas três  companheiras enveredam nesse rumo. Eu as acompanho sem olhar para trás.

De repente paro, e pergunto em voz alta: - Por que diabos estou seguindo vocês, vacas brancas, elegantes e esguias? Elas viram as cabeçorras em minha direção e mugem uma, duas, três vezes, irritadiças, com a intenção expressa de me fazer calar. Faço-me de surdo. Permaneço onde estou. Elas andam mais um pouco, agora silentes. É quando, emito profundo mugido, mugido berrante, mugido de boi provedor. [Elas então abanam os rabos e me olham, as três ao mesmo tempo, e me olham de um jeito diferente, quase respeitoso: como se reencontrassem o pai ou a mãe, perdidos nas brenhas do sertão ou devoradassadas em churrascos festivos].

Sem controle, mujo cada vez mais alto e cada vez mais boi. Tomásia, Terência e Ricarda olham-me com reverência – e mergulhamos fundo na mata escura – como se se estivéssemos voltando alegres para casa depois de interminável temporada no nosso eterno outono-inferno. [Byebyesil!].