Triste travessia: a vida em Mar Grande cinco meses após a tragédia

Causas ainda são desconhecidas; inquérito sai esse mês

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  • Thais Borges

Publicado em 14 de janeiro de 2018 às 06:57

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO

O mar sempre fez parte da vida da dona de casa Ana Paula Monteiro, 29 anos. Sua força, sua beleza e seus mistérios nunca a assustaram. Isso mudou no dia 24 de agosto de 2017. Desde então, Ana Paula não consegue vê-lo da mesma forma. Na verdade, ela sequer consegue olhar na direção daquele imenso azul a poucos metros de onde mora. Ana Paula nem sai mais de casa.

Talvez o nome dela não seja tão familiar quanto a imagem de seu filho Davi Gabriel Monteiro que percorreu redes sociais e estampou manchetes de jornais. Um dos momentos mais tocantes daquele dia foi quando Davi Gabriel, ainda com vida, foi carregado por um socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Pouco depois, veio a informação de que ele não tinha resistido. Aos 6 meses, o bebê de Ana Paula se tornou a mais jovem vítima da tragédia com a lancha Cavalo Marinho I, na praia de Mar Grande, em Vera Cruz, na Ilha de Itaparica. 

Naquele acidente, outras 18 pessoas que faziam a travessia da Ilha de Itaparica em direção a Salvador também morreram. Ao todo, eram 116 passageiros, além de quatro tripulantes e quatro policiais militares. Mas as consequências foram mais graves: centenas – entre sobreviventes e parentes – nunca mais serão os mesmos. A travessia continua sendo feita entre Salvador e Mar Grande (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Quase cinco meses após o acidente, ainda não há respostas sobre as causas: a Marinha só deve concluir o inquérito no fim deste mês. A Polícia Civil, por sua vez, diz que precisa do laudo da Marinha para finalizar sua própria investigação. A travessia Salvador-Mar Grande, feita pelas empresas CL Transporte Marítimo (dona da Cavalo Marinho I) e Vera Cruz, foi retomada depois de cinco dias e, neste verão, continua em alta. 

Para quem vê, de longe, pode parecer que nada mudou no transporte hidroviário em Mar Grande. Para um desavisado, pode parecer que não houve uma tragédia. E, de fato, quando o CORREIO esteve em Vera Cruz nesta semana, parecia que nada tinha mudado no serviço, utilizado por cinco mil passageiros diariamente. 

Mas, ao mesmo tempo, o sentimento geral era outro. Restou uma população assustada. Teve gente que passou a evitar vir a Salvador; gente que deixou, de uma vez por todas, de entrar naquelas lanchas. Tem gente que só usa o sistema ferry-boat agora; gente que não viaja mais sozinha. Isso mudou. E, como a própria mãe de Davi Gabriel diz, não volta. 

Seis meses Davi Gabriel teve uma micose no couro cabeludo. Ana Paula não sabe dizer, exatamente, o que atingiu seu filho, mas se assustou quando todo o cabelo do bebê caiu. Ela levou no posto de saúde de Mar Grande e uma médica passou um sabonete. Não adiantou. Os sintomas continuavam. Ela decidiu, então, pagar uma consulta particular com uma dermatologista numa clínica local. A nova médica receitou um remédio e Davi Gabriel usou por dois meses.  Mãe do bebê Davi, Ana Paula continua vivendo seu luto (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Finalmente, parecia estar curado. Só que Ana Paula queria ter certeza; queria ouvir isso da boca de um médico. Decidiu, então, levá-lo para uma consulta no Hospital Martagão Gesteira, em Salvador. Era esse o destino quando mãe e filho, acompanhados da avó, Gildete, e da irmã, Milena, 5, entraram na lancha Cavalo Marinho I. 

Ana Paula não fazia a travessia há anos. Nunca tinha andado naquela lancha. Quando entrou, ficou apreensiva. Quase quis desistir, quando viu que outras pessoas decidiram esperar pelo barco seguinte, ao dar de cara com a Cavalo Marinho I. Só que ela não podia perder a consulta. Sabia que tinha que chegar cedo. 

“Eu tinha que ir, porque aqui não tem essa estrutura. Não tem médico especializado”, conta, já sem segurar o choro. Ao subir na lancha, não tinha lugar para sentar na parte superior. Tinha gente em pé. Quando a viram com um bebê de colo, algumas pessoas levantaram e cederam os assentos para ela e sua mãe. Milena, a filha, sentou um pouco mais distante, entre duas senhoras. 

Com riqueza de detalhes, ela narra os momentos do acidente com a lancha. Os 10 minutos antes do naufrágio não tinham sido tranquilos. “A lancha começou a sacudir para um lado e para o outro. Eu só pensava: ‘meu Deus’. Minha mãe pediu que eu ficasse calma. Mas, aí, a lancha abaixou para o lado que eu estava. Veio e voltou, veio e voltou. Depois, quando veio, ela não voltou mais. Desceu e emborcou”. 

Ela diz que, diferente do que foi dito pela empresa CL na época, os passageiros não ‘andaram somente para um lado da lancha’. Ana Paula diz que ninguém andou. Ninguém correu. Ana Paula segurava seu filho, mas não conseguia. Tentou segurar pela roupa do bebê.“Tinha uma força que puxava ele dos meus braços. Eu segurei na roupinha dele e comecei a puxar, puxar, mas a força levou. Levou ele embora”, lembra Ana Paula. A filha de Ana Paula, Milena, também desapareceu na água. No entanto, ela foi resgatada por um dos marinheiros. Davi Gabriel desapareceu. Ela só voltou a vê-lo nas imagens que o mostravam nos braços do socorrista do Samu, em Salvador. Depois, só reencontrou seu bebê numa cerimônia que nenhuma mãe espera viver: no enterro da criança. 

Desde então, ela não consegue nem olhar fotos de Davi Gabriel. Com o marido e a filha, mudou de casa depois do acidente. No lugar onde moravam antes, tinha lembranças demais. Os únicos 6 meses de vida do pequeno foram ali. “Eu não conseguia mais entrar na outra casa. Trouxe as coisinhas dele, as roupinhas que ele usava para cá. Milena pergunta do irmão, se ele não vai voltar um dia. O pai está destruído”. 

Ana Paula também não consegue assistir ou ler reportagens sobre a tragédia. Não faz acompanhamento psicológico. Diz que prefere ficar ‘quieta’. Que Deus é quem a tem ajudado. Agora, ela luta com as memórias cada vez mais fortes: no dia 22 de fevereiro, ele faria um ano. A família já se programava para pagar o aluguel de uma casa de festas para comemorar o aniversário. "De repente tudo foi interrompido por causa de negligência, porque não queria gastar com a lancha", declara.Em vários momentos da conversa, ela diz o que mais deseja agora: justiça. Quer que os culpados respondam por sua culpa. “Eles não podem viver como se nada tivesse acontecido. A justiça precisa ser feita. Meu coração antes era completo. Hoje, tem um vazio”, desabafa.  Socorrista com Davi Gabriel nos braços pelo terminal, em Salvador. Não deu tempo de salvar bebê (Foto: Reprodução/TV Bahia) Pelo ferry Na casa da bacharel em Direito Adriana Brito, 50, as coisas também mudaram. Sua filha, Juliana, 22, é uma das sobreviventes do naufrágio. Na época, cursava Enfermagem em uma faculdade no bairro do Comércio, em Salvador. Todos os dias, pegava a lancha das 6h30. Naquele dia, na Cavalo Marinho I, estava na parte inferior, porque uma amiga queria dormir. Foi resgatada por um marinheiro, que segurou seu braço por horas até o resgate chegar. 

Adriana não esquece a imagem do reencontro com a filha – já em terra, Juliana sem sapatos e completamente molhada. Hoje, a jovem vive em Salvador. “Ela só vem para a ilha agora de ferry e nunca sozinha. Meu filho mais novo, de 19 anos, também vai ficar definitivamente em Salvador, justamente por isso”. 

A família passou a ter medo. O marido de Adriana, que é comerciante, vez ou outra ainda enfrenta as lanchas – mas nunca numa embarcação da CL Transporte Marítimo. Somente da outra empresa, a Vera Cruz. Para eles, o serviço prestado é diferente.  Na travessia, a orientação de como usar os coletes é obrigatória (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Mas esse temor se espalhou pela cidade. Seja quem perdeu um ente querido, seja quem apenas sabe os nomes das vítimas, seja quem continuou lá para contar a história: ninguém ficou imune. Só que nem sempre há outro jeito, como explica a técnica em laboratório Alaíde Andrade, 50. Ela era vizinha e amiga da aposentada Ivanilde Gomes da Silva, 70, que também morreu no acidente. 

Dona Ivanilde, que tinha feito transplante de córneas, vinha mensalmente a Salvador fazer acompanhamento no Hospital das Clínicas. Para Alaíde, a tragédia, na verdade, foi uma fatalidade. Mesmo assim, ela não deixa de ter medo, quando precisa fazer a travessia. “Semana passada, minha irmã pegou a lancha de 6h. O tempo mudou rápido e ela ficou atordoada. Eu admito que não uso o colete, mas fico de olho nele para qualquer necessidade”. 

No Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que foi designado para atender parentes de vítimas e sobreviventes, a recepcionista Magali Bispo, 46, vive sua própria dor. Também era amiga de Ivanilde. “Até hoje choro a morte dela. Fomos amigas por 27 anos. Era uma pessoa que nunca teve medo, ao contrário de mim. Enfrentava qualquer temporal”.

Lá, ela conta que nenhum dos sobreviventes têm feito acompanhamento. Até o fim do primeiro mês, eram frequentes as idas ao local. Depois, todos desapareceram. De fato, aqueles encontrados pelo CORREIO, não frequentavam o Cras. Juliana, a filha de Adriana, preferiu consultas particulares. Ana Paula, mãe de Davi, optou por não fazer. 

Magali viveu seu próprio trauma nas lanchas. Dezoito anos atrás, a embarcação onde estava ficou cinco horas em meio a um mar revolto. Depois disso, passou a evitar a travessia. Agora, não vai de forma alguma. Quando precisa comprar algo, dá o dinheiro para que outra pessoa traga de Salvador ou paga mais caro na própria ilha. Se for obrigada a vir à capital, vai de ferry-boat, mesmo sendo mais longe.  “Antes, eles (tripulantes) nem deixavam colocar os coletes. Nunca ensinaram a nada. Só depois que acontece a tragédia que mudam de atitude”.  Corpos colocados na areia da praia, em Mar Grande; tragédia matou 19 (Foto: Marina Silva/CORREIO) Enfrentar o mar Desde o acidente, a dona de casa Léia Pachedes, 52, só veio a Salvador uma vez, porque tinha que resolver assuntos na capital, há dois meses. Na ocasião, ela, que mora em Mar Grande, disse que passou mais de 30 minutos encarando o mar. Não queria enfrentá-lo, mesmo não tendo vivido a tragédia da Cavalo Marinho.  

“Quando entrei, tive medo de enfartar. A gente cria um trauma né? Essa lancha era para se aposentar como uma guerreira, não como uma assassina. Ela enfrentou muito mar, ajudou muito pai de família a criar os filhos”, dizia. 

Sua amiga, a aposentada Edinalva Santana, 66, se preparava para fazer a travessia no sábado (13), porque tinha que estar em Salvador às 6h para pegar um ônibus. De lá, seguiria em excursão pelo Brasil e Argentina. “Acho que vou de lancha mesmo, porque também tenho medo do ferry. A lancha, se virar, eu sei nadar. A gente pode se afastar dela. O ferry... Todo mundo afundaria”, opina. 

Nem todo mundo na ilha tem alternativa. Embora as passagens no ferry-boat sejam mais baratas (R$ 5 em dias úteis, contra R$ 5,30 nas lanchas que saem de Mar Grande e R$ 7 das que saem de Salvador – a diferença é devido a uma taxa de embarque no terminal da capital), os moradores contam que precisariam pegar um ônibus até o terminal de Bom Despacho, acrescentando mais um custo diário. 

“Acaba sendo o único transporte que tenho. No verão, chego a pegar quatro vezes por semana. Mas, no inverno, eu não vou nem amarrada, principalmente, em agosto, pelo vento forte. Nunca tive medo da lancha, mas agora estou tendo. Se aconteceu uma vez, pode acontecer de novo”, diz a empresária Cícera Gomes, 60. 

Ida e volta Na quarta-feira, o CORREIO fez duas viagens. A ida para Mar Grande foi às 7h, na lancha Nossa Senhora da Penha, da CL Transporte Marítimo. Na época, o comandante da Cavalo Marinho I chegou a dizer que a embarcação que naufragou era a ‘reserva’ – ela só entrou naquele horário porque a Nossa Senhora da Penha tinha sido retirada para limpeza do casco. Não houve nenhum registro do nome dos passageiros. 

Na ocasião, os tripulantes não fizeram a demonstração de como usar os coletes salva-vidas. Questionado pela repórter, um dos tripulantes disse que a ordem agora era exibir um vídeo com as orientações. De fato, um vídeo era exibido nos televisores do barco. Curto, mostrava um dos tripulantes ensinando a vestir o colete. Ficou sendo repetido por vezes e vezes até a saída da lancha. O problema é que era quase inaudível. “Está baixo, né?”, admitiu o tripulante, sem fazer muita coisa. Estava. 

Das cerca de 80 pessoas a bordo, 10 usavam os coletes – além da reportagem. Uma delas era a técnica em Enfermagem Rogéria Fiais, 42. Era seguia para assumir um plantão cuidando de uma criança. Costuma fazer a viagem quando a família que atende está na ilha. “Uso o colete por segurança. Sinceramente, não tenho medo. Isso (o acidente) nunca tinha acontecido, mas tomara que melhore”.  A família da dona de casa Nara Neres (no centro) usou os coletes (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) A dona de casa Nara Neres, 38, fez a família quase toda usar – eram seis pessoas, junto com ela. Era a segunda vez que usava as lanchas desde o acidente. Para ela, não era confortável. Os coletes pareciam empoeirados. “Prefiro a lancha do que o ferry. Acidentes acontecem, mas a gente tem que prevenir”. 

Na viagem de retorno a Salvador, a lancha foi a das 15h – a Joana Angélica I, da empresa Vera Cruz. Não havia vídeo, mas há placas com fotos orientando o uso do colete coladas nas laterais da embarcação. Além disso, no início da viagem, um dos marinheiros fez uma demonstração de como colocar o equipamento de segurança. Ninguém mais usou o colete além da repórter. 

Inquérito será concluído até o fim do mês O inquérito que vai apontar as causas do acidente deve ser divulgado no dia 22 deste mês, de acordo com a Marinha. Até lá, o órgão das Forças Armadas informou que não vai comentar as investigações. 

Inicialmente, o prazo inicial para a conclusão era de 90 dias – ou seja, chegaria ao fim no dia 24 de novembro. No entanto, a Marinha pediu extensão. Sem o laudo deles, o inquérito da Polícia Civil também não foi concluído. 

De acordo com o delegado Ricardo Amorim, titular da 24ª Delegacia (Vera Cruz), a investigação está praticamente pronta. “Ouvimos 135 pessoas. Solicitamos exames de lesão corporal das vítimas, necropsias dos 19 mortos, informação de institutos de meteorologia e pedi laudos de particulares. São laudos de um especialista do Espírito Santo que fez uma análise da situação e do tamanho do barco”, explicou o delegado, que preferiu não adiantar mais informações.  A lancha naufragou 10 minutos após o começo da viagem (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Procurada pelo CORREIO, a promotora Joseane Suzart não quis comentar o caso. Ela lidera uma força-tarefa do Ministério Público do Estado (MP-BA) que acompanha o caso. Em outubro, a Justiça negou, pela segunda vez, o pedido do MP-BA para que a travessia fosse suspensa. 

Em nota, a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) informou que a fiscalização da navegação – que inclui itens que vão desde o documento de embarcação até os equipamentos de segurança – são de responsabilidade da Marinha. 

“A Agerba, agência que regula o funcionamento dos serviços dos terminais marítimos, é responsável por: estabelecer tarifas, fiscalizar o cumprimento de horário das embarcações e a limpeza, bem como acompanhar a documentação de segurança (emitida pela Marinha) para permitir o funcionamento da linha”, dizem. Ainda segundo o órgão, o terminal de Mar Grande foi reformado e 90% das obras já foram concluídas, com investimento de R$ 1,3 milhão. 

Enquanto isso, nenhum representante da empresa CL Transporte Marítimo – cujo dono é o vice-presidente da Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab) – foi localizado. Já o presidente da Astramab, Jacinto Chagas, afirmou, por telefone que o uso de coletes não é obrigatório na travessia, mas que a demonstração está prevista pela norma marítima. 

Diferentemente do que foi dito por passageiros e moradores da Ilha de Itaparica, ele nega que a demonstração de como usar os equipamentos não fosse feita antes do naufrágio. “Não foi só por conta do acidente. Talvez não fosse feito com tanta ênfase, mas está prevista”. 

Quando perguntado pelo contato do companheiro de diretoria de entidade, Chagas pediu que o CORREIO retornasse a ligação em instantes, para que tivesse acesso ao número. Ele não voltou a atender os telefonemas.