'Um país sem cultura é um país morto', diz João Falcão

Autor de séries como Nada Será Como Antes e Sexo Frágil avalia o momento do audiovisual e fala sobre vinda a Salvador

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  • Laura Fernades

Publicado em 21 de outubro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Daryan Dornelas/Divulgação

Apaixonado por cinema, o dramaturgo e diretor pernambucano João Falcão, 60 anos, diz que só não trabalha mais na área porque demora até a ideia sair do papel. “Tenho essa coisa de dizer ‘vamos fazer?’ e fazer. O cinema às vezes demora muito tempo”, explica o autor de séries televisivas como Nada Será Como Antes (2016) e Sexo Frágil (2003). “Nunca tive texto na gaveta, sempre escrevo para montar”, garante.

Mas não é porque o tempo da televisão é diferente que trabalhar nela seja mais fácil, pondera. Autor da nova versão do programa Você Decide, que estreia em 2019, João revela: “foi a coisa mais difícil que já fiz na vida”. Além da adaptação do programa que ficou oito anos no ar, de 1992 a 2001, com apresentadores como Antônio Fagundes, Raul Cortez e Tony Ramos, João também assina a série O Riso de Ariano, que estreia no segundo semestre de 2019.

Prestes a chegar em Salvador para ministrar uma oficina de atuação no Teatro Gregório de Mattos, João revela que tem conversado com produtoras que estão trabalhando para plataformas como a Netflix. Mas, apesar de flertar com a produção audiovisual, o dramaturgo entrega que sua paixão está mesmo no teatro, porque é onde “pode arriscar mais”.

Para quem não lembra, João assina espetáculos como A Ver Estrelas (1985), A Dona da História (1997), O Auto da Compadecida (2000) e A Máquina (2005), que revelou Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta para o Brasil. Além disso, é autor de premiados musicais como Gonzagão - A Lenda (2012) e Ópera do Malandro (2014). Em entrevista ao CORREIO, João conversa sobre a dramaturgia no audiovisual e no teatro e sobre a importância da cultura. “O país sem exercitar a arte é um país morto”. Confira.

Você transita por diferentes linguagens como a televisão e o teatro, que é uma marca forte. O que te atrai em cada uma delas? Teatro é o lugar onde eu mais atuo na vida. A música foi que me levou para o teatro e a primeira peça que fiz [Morte e Vida Severina, em 1980] foi como diretor musical. Depois comecei a dirigir, escrever... Experimentei tudo e o teatro é onde sempre tenho que voltar. É uma coisa que a gente faz com pouca grana, entre amigos, é um jogo que não requer tantos recursos. Requer, às vezes, mas você tem opção de fazer sem. Teatro é onde você pode arriscar mais.Faço teatro com o máximo de sofisticação possível, mas sempre com olho no público, sempre quis ser popular. Nunca fiz para ser admirado por pessoas mais cultas, mais espertas.E a televisão tem essa coisa de ser popular. É uma forma de você atingir muita gente. É maravilhoso você fazer uma coisa e no dia seguinte encontrar pessoas em qualquer lugar do Brasil que viram. Claro que isso tem no teatro também, mas com menos pessoas. E o cinema é sonho de infância mesmo. Vi muito cinema e fiz pouco porque é uma coisa que é muito difícil de conseguir estrutura. Tenho muito essa coisa de “vamos fazer?” e fazer. O cinema às vezes demora muito tempo para filmar, montar, lançar... Tem um delay muito grande. Nunca tive texto na gaveta, sempre escrevo para montar. (Foto: Daryan Dornelas/Divulgação) Você tem conversado com produtoras que estão trabalhando para plataformas como Netflix e Amazon Prime Video, certo? O que dizer sobre esse novo formato audiovisual? É uma coisa muito nova. O que é bom nesse tipo de plataforma de streaming é que você não tem ligação com as empresas e tem mais liberdade criativa. Eles não são os mandatários das escolhas e decisões. Não depende da verba pública, no caso da Netflix e da Amazon, e você está trabalhando com pessoas do ramo. Por enquanto são só conversas, nada concreto.

Você disse, em entrevista recente, que “gerações de dramaturgos em potenciais estão escrevendo roteiros para a TV”. O que acha sobre esse streaming cada vez mais forte? Acho muito bom que tenham essas outras formas. Antigamente, se você queria fazer dramaturgia na televisão, ou ia para a Globo ou sobrava muito pouco de possibilidade. Hoje em dia, existem boas possibilidades, mais diversas. Acho fantástico. O que quis dizer é que é uma pena que o teatro não seja uma opção para os dramaturgos. A gente já viveu um período de boas produções de texto para o teatro, mas ficou uma coisa menorzinha. O que acontece é que está muito difícil viver de teatro. A gente faz para exercitar e por prazer, mas é complicado. Quanto mais ele fica envolvido com o marketing, como nos musicais americanos, mais o artista, a criação, o autor perdem o protagonismo. É quase heróico você ser autor de teatro. O musical é onde as pessoas querem mais investir, porque já foi testado nos Estados Unidos e tem retorno certo, sem nenhum risco criativo.Uma empresa vai querer investir mais no que já foi feito, então sobra muito pouco para os criativos, que começam a ser desvalorizados. O que é mais valorizado é o business. É triste. A gente que gosta, tem paixão, fica dando murro em ponta de faca. O teatro está num momento muito complicado mesmo. Cada vez mais caminha para esse lado onde tudo vira mercado. Não que não possa, mas não pode ser só isso.Em 2019, você vai assinar a nova versão de Você Decide, programa que ficou marcado pelo formato interativo. Como foi a experiência e o que o telespectador vai encontrar? O projeto está todo escrito. Foi uma experiência muito difícil, porque o espectador não escolhe o final, mas por onde o programa caminha. Então você tem que escrever várias possibilidades de roteiro. Foi uma loucura! Entre idas e vindas, foram uns três a quatro anos escrevendo. Depois que fiz esse projeto, escrevo qualquer roteiro com o pé nas costas (risos). Foi a coisa mais difícil que já fiz na vida. Você escreve várias possibilidades de uma mesma história. É uma combinação complicada, bem matemática. Um dos planos de João é remontar a peça A Máquina (2005), que revelou os atores Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta para o Brasil (Foto: Divulgação) Além dos novos trabalhos para a televisão, você pretende voltar a cartaz com A Máquina, certo? Como foi trabalhar nessa peça que revelou Lázaro Ramos, Wagner Moura e Vladimir Brichta para o Brasil? Tenho vontade, é um espetáculo que foi pouco visto. Foi mais falado que visto. Rapidamente o elenco inteiro fez muito sucesso, os atores tiveram muitas demandas e a peça não pôde continuar. O elenco ganhou o mundo. A ideia é encontrar novos atores, o Brasil tem muita gente. Eles tinham 22 anos na época, eram quatro garotos bem talentosos, cheios de energia e talento, pessoas que puderam se dedicar a um processo de descoberta de linguagens. Fiz isso a minha vida inteira, sempre tive interesse em trabalhar com jovens que não têm muito a perder, que se entregam e se arriscam mais. Eles têm muita liberdade.

Independente da linguagem, audiovisual ou cênica, qual é a importância da cultura e da arte, para você? Acho que o país sem cultura, sem exercitar a arte e a criação, é um país morto. É importante exercitar a mente, o ponto de vista, as várias impressões sobre os fatos. A arte faz isso, faz a gente exercitar um lado humano, que foge da brutalidade. Exercita nossa empatia com o próximo, com o ser humano, com o ambiente, com a vontade de fazer um lugar melhor, com pessoas melhores. A gente precisa exercitar esse lado da empatia pelo sentimento humano, pela alegria, pelos desejos, pelo sonho. Um povo que não sonha é um povo infeliz.