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Medicina Preta: primeira turma de médicos da UFRB entra para a história


 

Foto com 12 formandos negros viralizou nas redes sociais nas últimas semanas

  • Edvan Lessa

Publicado em 22/09/2019 às 07:00:00
Atualizado em 20/04/2023 às 07:20:09
. Crédito: Antonio Wagner/Divulgação

Berço da medicina no Brasil e estado com população majoritariamente preta e parda, a Bahia nunca formou tantos médicos negros numa só turma como agora. A colação de grau dos veteranos de Medicina da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no dia 29 de agosto, é inédita, não só para a instituição, como também na história do ensino superior brasileiro.

Numa foto que viralizou nas redes sociais, 12 estudantes – 41% dos formandos – posam imponentes de braços cruzados. Para alguns, o marco representado na imagem se confunde com um desvio na história, mas o novo capítulo é simbólico; mina uma tradição alheia à diversidade de perfis, e impacta a área da saúde, no estado, sem precedentes.“Ser da primeira turma traz o ‘peso’ de estar levando a ‘cara’ da UFRB comigo. A missão é fazer com que as pessoas conheçam a universidade e a qualidade do curso de Medicina no mercado de trabalho”, afirma Keline Carvalho, 27 anos, de Amargosa, recém-contratada na terra natal.Por dias, a imagem em questão percorreu perfis de pessoas anônimas e públicas, a exemplo da conta no Twitter do ex-presidente Lula. 

Keline, que dispensa o título de doutora, já tem mestrado e especialização e está em um grupo no WhatsApp, junto aos colegas negros. Nele, compartilham informações úteis às suas trajetórias médicas. O diálogo entre os novos médicos, inclusive, tem gerado oportunidades de trabalho. Alguns conseguiram contratos e, então, indicaram os colegas.

“Temos um grupo no WhatsApp para nos fortalecermos e trocar experiências”, escreve Lícia Reis, 29, natural de Santo Antônio de Jesus e médica em Iaçu. Aos cinco anos, ela já sonhava em ser médica. Começou a trabalhar aos 15, como manicure e, durante a faculdade, conciliava o trabalho com os estudos.

No início da graduação, conta, houve um congresso no qual um professor falou sobre o perfil racial do curso de Medicina da UFRB. A plateia que ouvia o docente teria ficado visivelmente desconfortável. “A sensação era de que nós, alunos negros, estávamos ‘sujando a medicina’. Dali por diante, teria que provar a todo momento que eu era capaz, sim, de me tornar médica”, conta.

Os episódios de racismo, velados ou explícitos, são comuns nos depoimentos dos estudantes da UFRB. Apesar disso, serviram também de força motriz para Fabíola Souza, 28, de Serrinha: “Diferente da maioria das jovens negras, sem a mesma oportunidade, ocupei esse lugar e hoje vejo que ele nos pertence, apesar de nos dizerem o contrário”.

A médica Reisyanne Lopes, 30, de Feira de Santana, considera que a formatura de uma mulher preta representa um ato político e de resistência. “A medicina era algo inalcançável porque não é muito comum que uma mulher preta, de família humilde, estudante de escola pública, filha de motorista de táxi e agente comunitária de saúde se torne médica, não é mesmo?”, indaga.

Perfil das escolas médicas A antiga Academia Médico-Cirúrgica, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é um exemplo de como determinadas exigências acentuaram as desigualdades e excluíram pessoas de classe baixa, antes da implantação de cotas étnico-raciais.“As elites colocavam seus filhos para se tornar doutores, mesmo que depois não atuassem. Há uma tradição elitista neste curso e ela foi, progressivamente, se democratizando”, explica Ronaldo Jacobina, professor aposentado da Ufba.“Ao longo da história da universidade no Brasil, uma característica marcante dos seus estudantes foi a presença maciça de indivíduos autodeclarados brancos e de alta renda, especialmente em curso de elevado prestígio social, como o curso de Medicina”, sublinha Luciana Santana, docente da UFRB.

Num livro publicado neste ano, a pesquisadora observou que o percentual de estudantes autodeclarados brancos no ensino superior brasileiro é de 38,3%, enquanto os autodeclarados negros, isto é, pretos e pardos, chegava a 30%.

No curso de Medicina da UFRB, o percentual foi de 76,7% – 40% negros; 36,7% pardos. “Acredito que não encontraremos este percentual de negros em outra universidade brasileira, em curso de Medicina”, pondera.

Em 2013, a turma aprovada era, predominantemente, do sexo feminino (76,7%); 86% eram naturais do estado da Bahia (86%); 66% haviam cursado o ensino médio em escola pública; 40% declararam ser negros e 53,3% informaram renda familiar entre um e dois salários mínimos.“Essa nação sempre foi algoz com a população negra. Para nós, ativistas e militantes da comunidade negra, estamos celebrando uma grande vitória, inclusive, que não imaginávamos que iríamos alcançar”, observa Valdecir Nascimento, coordenadora executiva do Odara Instituto da Mulher Negra.Tal cenário resulta, embora não exclusivamente, da Lei de Cotas que incide nas federais e que garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades e institutos federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

De acordo com Paulo Nacif, ex-reitor da UFRB, não é uma coincidência que os cursos da instituição como um todo apresentem um percentual de alunos negros compatível com o que existe na sociedade brasileira. “A diversidade racial da primeira turma de Medicina foi um projeto. A UFRB é a única que nasce com uma pró-reitoria de políticas afirmativas e assuntos estudantis”, expõe.

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Trajetórias A médica Nadjane Santos, 28, de Feira de Santana, optou por Medicina enquanto cursava o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS). “São 10 longos anos de faculdade. Não vou romantizar meu relacionamento com a UFRB, pois essa é uma história de dor, de privação e de lutas diárias contra a desistência. Mas é também uma história de resiliência e gratidão”, admite.

Assim como o grupo no WhatsApp - intitulado Medicina Preta -, estudantes descrevem outras estratégias para apoiar uns aos outros.“Dentre tudo que me fortaleceu ao longo do percurso, preciso destacar aqui o Coletivo NegreX formado estudantes de Medicina negros e negras do Brasil. Nesse espaço, me senti em casa, representado e acolhido”, expõe Vinícius Pereira, 27, nascido em Salvador.Na visão da santoantoniense Letícia Santos, 34, cursar a UFRB proporcionou uma experiência incrível, mas houve sofrimento devido à descrença de colegas e até de professores. 

Após a colação de grau, alguns falaram sobre os desafios e receios. “Eu sempre pude contar com professores para conversar sobre os casos dos pacientes. Agora, eu me torno mais independente”, compartilha Airana Ribeiro, 28, de Feira de Santana.

Atuação no Recôncavo A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) repercutiu a colação de grau dos médicos. Segundo a pasta, para além da identidade cultural, de conhecerem melhor o perfil epidemiológico da região Recôncavo, os médicos formados da UFRB tendem a atuar de forma mais direcionada às necessidades dos pacientes que, por vezes, são negligenciadas.

Para o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), Julio Braga, os médicos formados UFRB devem tentar permanecer no Recôncavo baiano. Já a Associação Médica Brasileira (AMB), ao ser indagada acerca do impacto desta formatura, informou que não opinaria.

Antes da colação de grau, Antonio Wagner Nogueira, 30 anos, comentou sobre o desejo de atuar em Unidade de Saúde da Família (USF), e em urgência e emergência hospitalar no Recôncavo baiano. Ele é um dos médicos contratados em Amargosa, e começou a trabalhar também no município de Elísio Medrado. 

Até a residência médica, os profissionais recém-formados atendem como médicos generalistas. A maioria dos bacharéis ouvidos pelo CORREIO prefere a medicina de família e comunidade, caracterizada por atender as pessoas ao longo de suas vidas, reunindo ações de promoção e recuperação da saúde.“Medicina de família e comunidade é a área de maior interesse e sempre esteve presente na minha trajetória no curso”, argumenta Antonio Wagner.Para Tayana Barbosa, 28 anos, que nasceu e atua como médica em Conceição do Almeida, o maior desafio agora é ser aceita socialmente como médica preta e oriunda da classe baixa. “Pretendo ser uma profissional tal qual a minha formação me propôs: médica de família e comunidade, do Sistema Único de Saúde (SUS), do povo do Recôncavo baiano e comprometida com a realidade social”, afirmou, antes da colação de grau.

A Estratégia de Saúde da Família, no Recôncavo, possui uma cobertura estimada de 87,56% médicos, enquanto a Bahia possui 72,73 %, segundo informou a Sesab. Na região existem 165 médicos atuando na Saúde da Família e há uma lacuna de, aproximadamente, 22 médicos para alcançar 100% de cobertura.

De acordo com Denize Ornelas, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, área que a UFRB prioriza na formação dos médicos, o perfil racial é importante por mudar as composições das turmas e permitir uma abordagem melhor da diversidade que existe da população brasileira, em relação às diferenças demográficas, econômicas e sociais, decorrentes do racismo institucional.

Ornelas também considera importante a aproximação entre médicos e pacientes negros. “Uma vez que se veem em uma posição que, classicamente, não é ocupada por pessoas negras, e que costumam ter uma origem social mais pobre”, contextualiza. Segundo Francine Conceição, 29 uma das médicas recém-graduadas, um episódio foi emblemático nesse sentido ainda durante a faculdade.“Fazendo uma visita domiciliar, uma senhora – que era minha paciente e que tinha sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC) – segurou minha mão e disse ao neto que estava ao lado: ‘Ela é das nossas, ela é preta e é médica’. Eles sorriram e eu me emocionei enquanto ela me encorajava a seguir sem desistir, apertando a minha mão”, descreve médica, natural de São Félix.“Sempre que a hierarquia vai para cima, é considerada de maior valor, são vistos as mulheres e os homens brancos. Se o campo escolhido for de menor prestígio, é mais fácil as pessoas compreenderem a presença das pessoas negras”, considera Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública pela Ufba que estuda a saúde das mulheres negras.

Cotas regionais De acordo com os pesquisadores, estudantes e formandos da UFRB, há uma tendência na redução do percentual de negros e de baianos dentre os novos graduandos de medicina.

“É um fenômeno que tem nos preocupado bastante porque o nosso curso é construído na perspectiva da expansão da educação superior para o interior da Bahia, e para a estratégia de provimento de médicos no interior”, reflete Luciana Barbosa, docente da instituição.

A professora e ex-coordenadora do curso de Medicina explica que esse novo fenômeno tem sido objeto de discussão interna. Segundo ela, é comum que estudantes do Sudeste ocupem as vagas da UFRB, e de outras escolas médicas baianas, ao utilizarem o Sistema de Seleção Unificada (Sisu). 

“É possível perceber, no dia-a-dia, que as turmas mais recentes têm uma quantidade maior de estudantes brancos em relação à que acabou de formar”, comenta Everaldino Rodrigues, 29 anos, e aluno da nona turma de Medicina. Conforme apontam os professores Paulo Nacif, Luciana Santana e Luciana Barbosa, uma solução para assegurar a diversidade das futuras turmas requer a implantação de um sistema de avaliação que permita a estudantes do próprio Recôncavo ingressarem em condições menos desiguais, isto é, por meio de cotas regionais.

Em 2017, a Procuradoria Geral da República (PGR) defendeu que esse tipo ingresso, com base unicamente na origem do candidato, é inconstitucional. Entretanto, a discus-são sobre a constitucionalidade das cotas regionais ainda está em andamento no Su-premo Tribunal Federal (STF).

Conforme a assessoria de comunicação da UFRB, a instituição possui 92% dos seus estudantes oriundos do estado da Bahia. Desses, 79,6 são do interior do estado e 62,9% pertencentes ao Recôncavo. Ainda assim, está em discussão o Programa de Avaliação Seriada, cujas ações de implantação devem ocorrer em 2023. O objetivo do PAS é promover a articulação da universidade com a educação e básica e, como isso, fomentar uma política de acesso diferenciada.  

*Esta matéria é resultado de parceria entre revista AUGE, sediada em Santo Antônio de Jesus, e o jornal CORREIO