Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Da Redação
Publicado em 19 de setembro de 2016 às 04:20
- Atualizado há 2 anos
O ano de 2016 apresenta um cenário de incertezas. Presenciamos mudanças substanciais no sistema político que trazem à tona o questionamento sobre a estabilidade do sistema democrático e a necessidade de construção de métodos aptos a instituir relações jurídicas paritárias.Tenho uma preocupação especial com os reflexos das políticas públicas esportivas na realidade daqueles que praticam a atividade em questão. Portanto, me chamou atenção o reconhecimento fornecido pelo Ministério do Esporte da prática de capoeira. Trata-se de um ato administrativo que abriu um horizonte de possibilidades para a capoeira dentro do microssistema desportivo, mas, ao mesmo tempo, acendeu a luz vermelha no quesito histórico e cultural.Não podemos esquecer que a capoeira extrapola os limites desportivos e se confunde com a história de luta do brasileiro e, em especial, do povo negro. Em um exercício de personificação, podemos considerar que sua “biografia” carrega parte substancial da história da resistência negra. “Nasceu” nas senzalas, sobreviveu com mandinga, ganhou força, foi marginalizada e criminalizada pelo sistema escravagista (Código Penal de 1890). Mas aquilo não a intimidou.Mestre Bimba lhe deu nova face e as classes mais abastadas passaram a praticar e respeitar elementos de uma cultura que, até então, acreditavam não lhes pertencer. Em 1937 a luta venceu a opressão. Houve a descriminalização e primeira menção oficial à qualidade desportiva, ainda que tecnicamente precária. Daí em diante ela ganhou o país e o mundo, tornando-se elemento indissociável da cultura brasileira e fonte de subsistência e inclusão social.Sua biografia tem um pouco de poesia. Quis a vida que um negro baiano, filho da resistência e dono de uma sensibilidade cultural única, fosse seu interlocutor na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 2004. Me refiro ao grande Gilberto Gil que, enquanto titular do Ministério da Cultura, fez um discurso histórico em defesa da capoeira e, em minha opinião, deu um passo decisivo para o reconhecimento da mesma enquanto instrumento identitário de nosso povo. Ali foi plantada a semente para que, em 2014, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) reconhecesse a capoeira enquanto Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade.O apanhado histórico e a liberdade literária se fizeram necessários à plena compreensão deste texto, vez que “ser esporte” fatidicamente levará ao ideal de profissionalização e trará incidência de “hipóteses normativas jusdesportivas”, cuja consequência será uma reação em cadeia. Faço menção à necessidade de reestruturação das associações de capoeira, às inevitáveis demandas entre federações existentes, assim como debates envolvendo a Confederação Brasileira de Capoeira, posto que oxigenará a pretensão de transformar a capoeira em esporte olímpico. Também há de se questionar como será a padronização do sistema de cordas, estrutura das competições, formações de Tribunais de Justiça Desportiva e afins. Será um caminho longo. Estes processos e procedimentos, extremamente necessários, devem ser realizados com a maior cautela possível. A busca pela “profissionalização desportiva da capoeira” não pode atropelar sua história e os reflexos que a tornam uma arte marcial única. Durante todo o processo de construção da capoeira, em suas variadas vertentes, foram agregados elementos culturais, estruturais e religiosos reconhecidos internacionalmente que não podem sofrer descaracterização. Neste sentido, lembro a importância que O Estatuto da Igualdade Racial possui para o tema, uma vez que seu artigo 20º traz para o Estado a obrigação de preservar as características tradicionais da capoeira, agindo ativamente para impedir algo que retire sua essência. Friso que o legislador foi extremamente feliz com esta medida. O Estado precisa atuar com serenidade durante este processo de transição, fiscalizar as entidades administradoras do desporto e convocar material humano qualificado para auxiliar esta fase de transição. Não haverá resultado social eficaz sem a participação dos representantes da capoeira, dos historiadores, de corpo jurídico qualificado e demais profissionais ligados à prática esportiva. Ainda haverá muito o que escrever sobre a Capoeira. Salve.* Fernando Santos, advogado e presidente da Comissão de Esportes da OAB/BA>