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Saulo Miguez
Publicado em 10 de fevereiro de 2024 às 10:24
Verdade seja dita: se não fosse o povo, não haveria Carnaval. Esse amontoado de gente que, até a Quarta-Feira de Cinzas, fala a mesma língua, mete as mesmas danças e carrega no peito e nos quadris a tradição momesca é o que dá vida ao trio, ao camarote, mas, principalmente, à rua. O meio-fio se arrepia com a energia que emana dessa gente. >
Legítimo herdeiro da praça, como bem afirmou o poeta Castro Alves, o povo, este ano, é mais de três milhões de aglomerados, um milhão deles de fora de Salvador, e outros 250 mil que vendem água, cerveja e comida, dirigem caminhões, catam latas, seguram cordas e fazem o tambor da euforia bater.>
A quantidade de gente só não é maior que a de aleatoriedades que encontramos pelos caminhos. É Mulher Maravilha mandando áudio pirada enquanto dança Ashansú no encontro de trios; é o Kiko que, do nada, começa a chorar com os acordes de Chame Gente; e um cidadão comum que se senta na rua pra meditar. >
Com a entrega da chave da cidade ao Rei Momo, entra em vigor o decreto que outorga ao povo a liberdade de ser o que bem entende e fazer o que quiser. Está liberado até abrir mão do nome de batismo e se autoproclamar “Calma, Calabreso”, “Mago Merlin”, “Priguete Sangalo”, “Macetando com Força”, “O Brother da Água”, “A Tia da Roska”. É algazarra em estado puro.>
Desse caldo surge o casal pré-histórico Fred e Wilma Flintstone, sobre as peles de Maurício Martins e Joseph Nauvoo, que amam o Carnaval de Salvador porque por aqui se aparecer nunca é demais. “Sempre gostei de chamar atenção. E nesse Carnaval a gente pode”, comemora Joseph. >
E o que falar do trio luso-baiano Marmita de Casal, formado pelos portugueses Rafael Rodrigues e Luiz Manoel, e pelo soteropolitano Matheus de Oliveira? Após 15 anos de planejamentos frustrados, a trinca, que se conheceu na terrinha quando Matheus passou um tempo do lado de lá do Atlântico, finalmente se reencontrou na folia.>
Em bom português, Rafael é direto ao descrever a festa. “Mal começou e já estou amando. É muita perversão e não há limites para a pegação”, disse. O tema da fantasia foi inspirado em “umas histórias que já rolaram” em outros festejos de além-mar. >
Xixi no copo>
Essa semana especialmente peculiar do calendário baiano é a brecha na Lei da Impenetrabilidade da Matéria, aquela que diz que dois corpos, ao mesmo tempo, não ocupam o mesmo lugar no espaço. Se o pessoal da Física tivesse saído na pipoca do BaianaSystem, com certeza, iria rever esse conceito. >
No meio de todo esse aperto, nem sempre dá tempo de chegar ao banheiro químico, ou encostar na balaustrada mais próxima para fazer aquele xixi. Mas isso não é problema para o experiente folião Nilton Almeida, baiano que mora há 33 anos no Rio de Janeiro e se recusa a passar um Carnaval que seja na cidade maravilhosa, sempre regressa à Bahia. >
“Eu mijo no meu copo e jogo o xixi no chão. Isso quando lembro. Quando não lembro, eu bebo. O xixi é meu mesmo”, resumiu. >
Essa cerveja que vira amônia chega ao circuito pelas mãos de ambulantes como Josimeire da Silva, que há 27 anos tem no Carnaval uma importante fonte de renda.>
Sem licença poética, Josimeire, entre a abertura da festa e a Quarta-feira de Cinzas, mora em frente ao Cinema Glauber Rocha. De isopor e cuia, ela se muda da sua casa em Cajazeiras com a filha e o genro, também comerciantes, para o ponto cativo.>
Em quase três décadas, ela já viveu foi coisa. “Minha vida é uma história. A gente dormia no beco do mijo e já acordamos aqui até debaixo de pedrada”, relembra.>
Danielaverso >
Na era da Inteligência Artificial, um multiverso Mercury ocupou o Centro. Mimetizando a capa de O Canto da Cidade, um grupo de 16 cearenses desembarcou em Salvador para homenagear a pioneira do Axé.>
Em seu 12º Carnaval na Bahia, o estilista Bruno Xavier foi quem vestiu as Danielas. Sua vinda para cá é uma tradição que honra a sua origem. Afinal de contas, seus pais se conheceram em um show de Bell Marques. “Eu tenho Axé tatuado no braço e sou apaixonado por essa terra”. >
Até o lixo>
Diretamente de Muritiba, Ítalo Sabbadini é daqueles fominhas de Carnaval que só saem no lixo. Para ele, a festa é inexplicável. “É o calor. É o sorriso. É o suor. É uma delícia”.>
Falando em lixo, esse também é gerido pelo povo. Enquanto a maioria pula, milhares de mãos se esgueiram por entre os pés para catar latinhas, plásticos e outros resíduos que, ao final da festa, vão somar cerca de 100 toneladas de material reciclável, um número significativo que nos dá uma ideia da importância das pessoas nesse evento.>
E vem mais por aí>
A cada ano, mais gente quer ser o povo do Carnaval de Salvador. Pois, quem vem quer voltar e, de preferência, acompanhado. A paraense Joice Esselbach, que mora há 10 anos nos Estados Unidos, fez sua estreia na folia e já planeja 2025. “Eu conheço mais de 15 países e nunca senti nada parecido. Ano que vem eu vou voltar e trazer uma turma de americanos”, anunciou.>
Assim, tal qual coração de mãe, a folia se dilata e acolhe gringos, gregos e troianos que chegam por terra, céu e mar e têm a honra de, ao menos por alguns dias, viver a incomparável experiência de ser parte do povo da Bahia. >
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