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Publicado em 19 de julho de 2025 às 11:00
Há três dias morreu minha avó Teté; um ano antes partiu minha avó Célia. Aquele tipo específico de dengo oriundo de mulheres que nunca falaram grosso comigo na vida eu nunca mais vou ter, mas o que eu queria? Que as duas vivessem eternamente? Que elas estivessem agora a tomar chá de limão com Deus e a psicografar mensagens sobre a maciez das nuvens? Que reencarnassem, joelhos novinhos, mas sem lembrança de nada da vida pregressa comigo, em um ciclo sem fim? Que só envelhecessem até os 25 anos e fossem jovens para sempre? Ou que acontecesse como naquele filme da sessão da tarde cheio de megeras taradas por um elixir da juventude, que definham até suas pelancas virarem pó, mas sem morrer? >
Todas as coisas que eu desejo quando o pensamento começa a debulhar um sonho improvável envolvem planos de quando eu ganhar na loteria (eu sequer aposto!), de poder voltar no tempo para nunca experimentar cigarro ou para sempre ter usado fio dental no dente e protetor solar no rosto, ou de um dia ser agraciada pelo poder de Emília, a Marquesa de Sabugosa, em reformar a natureza, e salvar a humanidade do inexorável evento da morte. Não sei se todos são como eu, mas pensar no fim frequentemente me tira o ar, tamanha a angústia que dá. Eu tenho medo de morrer. Engraçado é que isso só ocorre à noite. A aura jocosa que a luz do dia me transmite não deixa que eu sinta receio de me desligar da matéria antes do pôr do sol.>
Mas, na grande reforma que eu tanto fantasio, eu não penso em salvar os outros seres vivos, e não estou sendo cruel. Em primeira análise, acredito que os insetos dominariam toda a superfície do planeta por sua quantidade, se deixassem de morrer aos bilhões todos os dias. E os cachorros, tão fofos e amigos? Desculpe, mas ficam de fora também. Se eles não cogitam a morte como uma certeza e nem pensam se há vida após ela, não sofrem como nós e, logo, não precisam de um complicado recurso extensor da vida. Além do mais, tem a logística: se todo dinossauro que habitou a Terra fosse imortal, não haveria geografia para mais nada hoje habitar. E sem fóssil, sem gasolina, bebês reborn ou purpurina: já pensou passar a eternidade sem poder brincar um carnaval fantasiada de obstetra de bonecas e depois voltar de Uber?>
Apenas humanos teriam a vida eterna, então, de acordo com o meu sonho que tenta tomar assento na razão. Teríamos ainda vivos os primeiros Homo sapiens, nossos coleguinhas cabeludos que marcaram a gênese da nossa raça há 200 ou 300 mil anos, e nunca mais uma dúvida arqueológica ficaria pendente, já que os criadores dos desenhos rupestres e das cerâmicas aterradas poderiam contar como fizeram cada coisa. Daria tempo de, em uma só vida, decorar a Biblioteca de Alexandria e aprender todos os idiomas que já inventamos. Eu não precisaria escolher entre medicina, fisioterapia e direito: cursaria, sem pressa, uma graduação de cada vez. Teria tempo para ser boa em cada carreira, depois mudar de ramo e recomeçar. >
Por dia, seriam poupados 150 mil enterros, ou 56 milhões de pessoas deixariam de morrer todo ano, em uma estimativa que acabei de copiar do Google. O planeta inteiro se transformaria numa lotada Metropolis de Fritz Lang com cinco séculos de antecedência, e todos o esforços das grandes navegações europeias do fim da Idade Média seriam para descobrir possibilidades de habitar endereços espaciais. Casas não existiriam, apenas prédios altíssimos com espaços reduzidos para caber apenas uma pessoa em cada apartamento - sim, porque o casamento entraria em desuso uma vez que descobríssemos o “felizes para sempre” em um sempre que não acaba. A poligamia venceria, já que, com o tempo, todo mundo acabaria pegando todo mundo.>
Quantos mercúrios, júpiteres e martes seriam necessários para abrigar toda essa gente que não mais daria de comer às minhocas da terra? Quantos de nós preservaríamos o viço de quem tem amor pela vida e quantos seríamos amargurados e sozinhos? Com quantos habitantes nascidos o governo desse imbróglio populacional interestelar baixaria um decreto para proibir de nascerem as novas gestações de imortais? Quantas galáxias de almas velhas, pobres e enjeitadas teríamos? Com quantos anos enjoaríamos de viver e desejaríamos um pouco de mistério que pintasse numa etapa seguinte da mesmice de existir? E se, de repente, a onda fosse tentar voltar para o vazio que era antes de nascermos? Eu queria vida eterna como alternativa a ter que me despedir da minha consciência e das pessoas que eu amo, mas já entendi que não existe estrutura possível para esse desejo. Queria, então, que, um dia, bem longe de hoje, eu quisesse morrer como quem quer tirar um cochilo à tarde. Puf! Sumir sem nem sentir.>
Joana Rizerio é jornalista e autora de O Diabo Também Manda Flores e Na Pior em Berlim, Londres e Salvador (Noir Editora - www.editoranoir.com.br)>