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Da Redação
Publicado em 21 de outubro de 2018 às 05:00
- Atualizado há um ano
Não o vi na primeira vez – eu o ouvi na primeira vez. Imerso nos pensamentos imperfeitos e aleatórios que advêm de minhas caminhadas diárias, som estapafúrdio e inesperado assustou-me. Olhei pelo retrovisor. Rapaz mulato, algo em torno de 25 anos, emitia fonemas e sílabas escalafobéticas sem vírgulas, sem pontos finais, sem reticências, feito fosse carretilha verbal sem freios ou correntes, desembestada.
Pensei em acelerar o passo e me livrar do que imaginava pudesse me causar algum dano físico ou transtorno indesejado. Mas o rapaz que falava sem freios ou correntes me desarmou: abriu-me sorriso franco e reparador, gesticulou de maneira enfática, não me aporrinhou, e me ultrapassou com garbo e esplendor sem parar de grunhir.
Isso. O rapaz grunhia. As falas desconexas que disparava feito fossem balas de metralhadora matadora não faziam sentido algum. Era idioma próprio que só o próprio sabia os significados, significantes, verbos e inclinações.
Depois dessa primeira vez reencontro-o sempre. Com o tempo e convivência fortuita em fugazes encontros passou a me fazer reverência gongórica, seguida do sorriso franco e reparador e dos sons, digamos, dodecafônicos que emite.
Espírito inquisidor e inquieto de jornalista e escritor me cobrava entrevista com o cara. Mas como, cara-pálida, se o que o rapaz grunhe não bate coisa com coisa? E se fosse surdo também?
Não, não é surdo também. Um dia quando ele caminhava e vociferava à minha frente eu o interpelei, e perguntei: - Ei, cara! Como é o teu nome? Ele se virou, me encarou, sorriu largo, grunhiu o arrazoado de sons de sempre e seguiu caminho.
Em madrugadas insones o rapaz que, digamos, sabe nadadês me vem à mente. Certa noite matei a charada. Ele não grunhe. Ele balbucia feito criança que ainda não aprendeu a articular as palavras. [A lira do delírio me sacode: - E se o cara, conscientemente, se recusasse a falar? Com a banalização da fala ora em pleno progresso não falar, apenas auscultar, faz o maior sentido. Eu apoio].
Esse cara passa quase todos os dias pela rua onde moro. Sempre que ouço o balbuciar desse rapaz, corro à janela. Ao me perceber, reverencia-me e desenha no rosto pardo o sorriso largo que lhe é marca registrada. Eu lhe aceno. Eu o abençoo em silêncio. E depois me recolho, mais leve e menos dramático.
Sempre manso e cordial, esse cara sempre visita as casas vizinhas onde habitam meninos e meninas que ainda não aprenderam a falar. Adoram-se. Riem-se uns dos outros. São felizes. Tagarelam na língua dos loucos e das crianças.
Em dias de tristeza e tédio vorazes, quando nada faz sentido, nem nunca fará, penso no rapaz que sabe nadadês, e desejo ouvi-lo – como se o balbuciar dele me acalmasse, e, de fato, me acalma.
Dias nos quais não ouço o balbuciar desse doidinho-criança não são dias felizes. [Quando crescer, quero saber nadadês].[Que outros doidinhos crianças se espalhem Brasil afora e ajudem a espantar os muuuuuuitos fantasmas que ora nos azucrinam!].