A barbárie, o suicídio e o jornalismo; temas para literatura e psiquiatria

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  • Malu Fontes

Publicado em 11 de junho de 2018 às 05:56

- Atualizado há um ano

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Para ler ao som de Alucinação, de Belchior. Cena 1: Cosme de Farias, bairro de Salvador. Uma menina de 16 anos vai dormir. Acorda de madrugada, num quarto muquifo que poucos são capazes de imaginar (mas tem foto no jornal), pega seu bebê de quatro meses que dormia sobre uma cama improvisada ao nível do chão, feita de uma velha cadeira de praia dobrada e forrada com um pedaço de espuma velha suja, sobe para uma laje, joga-o dentro de um tanque d’água desses que a gente vê aos milhares na paisagem da periferia. Assiste ao bebê debater-se na água escura e fria até morrer e volta a dormir ao lado do que a imprensa nomeou como companheiro e microempreendedor, um homem de 52 anos.

A razão, segundo ela, para o filicídio: o companheiro a mandou sair da internet, à meia-noite, porque ela tinha que levar o bebê para tomar vacina pela manhã. Façam as contas: aos 16, a menina que cometeu o filicídio já tinha um bebê de quatro meses, filho de um homem que o abortou. Ou todo mundo aqui faz questão de continuar ignorando o aborto masculino? É simples, barato e legal: basta ir embora. O jornal diz que o microempreendedor de 52 relaciona-se com ela desde o 4º mês de gravidez. Após as contas e imaginarem a cena, favor desenhar o conceito de condição humana e de pedofilia. E não se esqueçam do feto dentro do útero da menina e do romance. Detalhe: há dois anos, a menina já havia deixado sequelas irreversíveis em uma irmã de 2 anos, após agredi-la com uma martelada na cabeça.

Linchadores Cena 2: Parque da Cidade, 26 de maio, Brasília. Um garoto de 16 anos vai pela primeira vez sem os pais a uma festa. Em meio a um evento com 1.500 pessoas, foi cercado e linchado por 20 jovens de classe média alta, que gritavam “pega” e “mata”. Os linchadores do parque deram chutes, garrafadas, socos e facadas. Alguém filmava, e a multidão nada fez. E ainda gritava: “pega!”, “mata!”, “finaliza!” Ninguém foi preso.

Cena 3: Estrasburgo, França, um quarto de hotel de luxo. Um homem milionário, endeusado pelo talento e pela fama, adorado por ricos e famosos, estrela das mais importantes publicações do mundo, situado no olimpo dos melhores chefs de cozinha. Anthony Bourdain, 61 anos, o badaladíssimo chef de cozinha nova-iorquino, dá um basta em sua agonia diante das dores da vida e suicida-se. Uma parte da imprensa, e uma massa de leitores, vai pelo caminho mais óbvio para especular o ato de Bourdain ao desistir do mundo: o tédio da fama e da riqueza dos famosos que incursionam no caminho das drogas pesadas.

Foi dor É complexo entender que droga não é causa, mas consequência de um sintoma de dor anterior. É complexo demais pensar que pode não ter sido o tédio da riqueza aliado à droga que o levou ao suicídio, mas tão somente a mais absoluta e insuportável lucidez. Ler A Ferida, um texto de Bourdain diante de um homem que sobreviveu ao derretimento pelas bombas de Napalm atiradas pelos Estados Unidos em Saigon, no Vietnã, faz seu suicídio parecer quase natural.

Cena 4: 5 de maio. Um apartamento de um dos endereços mais caros de Nova York. A estilista Kate Spade, rica, famosa e com uma filha de 13 anos, suicida-se e deixa uma carta à menina, pedindo desculpas. De novo, a imprensa não sabia como esconder sob letras o desconforto de noticiar o suicídio. Ninguém conta aos produtores das hard news que suicídio nunca matou ninguém. A coisa começa lá muito atrás. Assim como os beijos mais ardentes não vêm nunca da boca, a morte do suicida não vem do ato. Eles já morreram muito antes. E não foi de queda, centenas de pílulas, veneno ou revólver. Foi de dor da vida. E quando se trata da barbárie, da desumanidade e do suicídio, o jornalismo está por fora. Esses são temas para a literatura. E para a psiquiatria.