A crise migratória na Europa, um contraexemplo para a América do Sul

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  • Da Redação

Publicado em 2 de setembro de 2018 às 07:36

- Atualizado há um ano

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Em época de campanha eleitoral no Brasil, uma pergunta preocupa a mim, professora francesa radicada na Bahia há 18 anos: será que o tema da imigração está se tornando, como nos países europeus ou nos Estados Unidos, o tema que focaliza quase exclusivamente os debates entre os candidatos, como se as questões de recessão econômica, dos novos desafios educacionais, de crise moral ou os problemas de terrorismo dependessem inteiramente da imigração? Será que políticos inescrupulosos e cínicos vão também cair na fácil tentação de instrumentalizar a tragédia de homens e mulheres forçados a deixar seu lar, sua família, sua cultura, sua história para simplesmente sobreviver no intuito de manter ou acessar o poder?

Vale lembrar brevemente a recente experiência europeia, pois ela pode servir de contraexemplo de como os países latino-americanos, e o Brasil, em particular, devem reagir diante de um novo problema que o continente enfrenta desde o colapso da Venezuela. É imprescindível evitar o comportamento lamentável que os países membros da União Europeia adotaram no tocante à onda de migrantes que começou em 2010, depois da deflagração de guerras civis no Oriente Médio (em particular na Síria), da agravação do conflito na Líbia, das perturbações em vários países africanos provocadas por razões econômicas e pela atuação de grupos terroristas perseguindo as populações.

A “Selva de Calais” foi o campo de refugiados no norte da França, próximo à estrada que dá acesso às balsas em direção ao Reino Unido, que abrigou em condições desumanas milhares de pessoas e que se tornou símbolo da crise migratória na Europa e da incapacidade da União Europeia de lidar com a questão dos migrantes. Com a crise financeira dos subprimes, em 2008, essa crise migratória é uma das principais causas da instabilidade atual da Europa. Ela é uma das explicações do inesperado “Brexit”, quer dizer, da saída do Reino Unido da organização regional em junho de 2016. Ela causou – e causa ainda – um recrudescimento das divisões e das tensões diplomáticas importantes entre os países europeus que não conseguem achar um consenso sobre a atitude a adotar: enquanto a Comissão Europeia, com o apoio da Alemanha e da França, buscou impor cotas para cada país da União, os países da Europa do Leste rejeitaram categoricamente a ideia de abrir suas fronteiras sob o pretexto que a entrada de imigrantes muçulmanos constituía uma ameaça para a identidade cristã da Europa. Diante da resistência da maioria dos países europeus em acolher os que fugiam, os bombardeios do governo de Bashar El Assad, presidente da Síria, e do grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS segundo o acrônimo inglês), o mecanismo de repartição obrigatória dos refugiados foi abandonado em 2016 e dezenas de milhares de sírios e iraquianos foram obrigados a atravessar o Mar Mediterrâneo, em barcos precários, para entrar clandestinamente na Europa. Recentemente, a Organização Internacional para os Migrantes (OIM) publicou um documento onde revelou a estimativa de 4.000 migrantes que pereceram nos últimos 10 anos durante a travessia, tornando o Mar Mediterrâneo “um cemitério”.

Hoje, essa crise migratória provocou a emergência de partidos políticos populistas, xenófobos e eurocéticos ou anti União Europeia, como na Áustria, França, Reino Unido, Hungria, Polônia, Itália, Alemanha e Suécia, que ameaça diretamente a existência da União Europeia. Atualmente, são navios de ONGs humanitárias que erram semanas e semanas nas águas internacionais até conseguir atracar, em razão da interdição dos governos italianos ou franceses de acesso a algum porto para desembarcar os homens, mulheres e crianças que eles salvaram do naufrágio. Alguns países, em aberta violação do Acordo sobre o Espaço Schengen, que implantou um espaço europeu sem fronteiras internas, construíram muros para impedir a entrada das pessoas deslocadas nos seus solos. De maneira geral, a maioria dos países da União Europeia desrespeita suas obrigações internacionais decorrentes dos instrumentos internacionais que versam sobre o acolhimento dos refugiados (como a Convenção de Genebra sobre os refugiados de 1951) ou que consagram os direitos humanos que protegem os direitos fundamentais (como o direito à vida ou à dignidade da pessoa humana) de todos, inclusive dos estrangeiros. Aparentemente, e felizmente, o Brasil não adotou tal comportamento, mas não podemos negar que o tema da abertura das fronteiras às pessoas fugindo de seu lar por razões econômicas, políticas ou depois de uma catástrofe natural surgiu na esfera política do país.

Depois da imigração haitiana, iniciada no Brasil após o terremoto que afligiu duramente o Haiti em 2010, matando mais de 150 mil pessoas e deixando centenas de milhares de pessoas sem lar, agora é a crise política e econômica que tem assolado atualmente a Venezuela que, além de provocar uma nova onda de deslocamentos rumo ao Brasil, traz as consequentes reações da sociedade civil. Se na mídia e nas redes sociais podemos perceber inquietações de alguns brasileiros sobre o “êxodo” de estrangeiros no solo nacional, é necessário relativizar, preliminarmente, o risco de invasão. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), em fevereiro de 2018, quando os Venezuelanos começaram a entrar em proporções maiores no estado de Roraima, tomou a precaução de denunciar a percepção distorcida entre os dados e a pretendida explosão de entrada dos migrantes. Com efeito, o número de migrantes pode ser considerado inexpressivo em termos absolutos quando comparado com o tamanho da população brasileira, a extensão territorial do país ou quando equiparado às mais de 65 milhões de pessoas forçadas a abandonar suas casas devido a guerras, violência ou perseguição total no mundo. Nos meios nacionais de comunicação, há uma grande discrepância nos números divulgados de pessoas venezuelanas que entraram no território – entre 40.000 e centenas de milhares. É necessário conferi-los seriamente, pois nos países europeus, por exemplo, não é raro os partidos ou governos populistas e xenófobos exagerarem, para não falar manipularem, as estatísticas, com o fim de assustar a população do país anfitrião e provocar uma reação de rejeição. Tratando-se, na ocorrência, de deslocamento entre países vizinhos, o Brasil e a Venezuela, é preciso tomar em consideração o movimento “pendular” do fenômeno: muitos dos venezuelanos cruzaram a fronteira apenas para comprar alimentos e remédios, antes de voltar para o próprio país.

Segundo o ACNUR, o total de imigrantes, em situação regular e irregular, corresponde hoje a 1% da população total do Brasil, o que é pouco, segundo Camila Asano, Coordenadora dos Programas da ONG Conectas, Direitos Humanos, em comparação com a média mundial (3,7%) ou a situação dos Estados Unidos (14%). Vale lembrar que, entre 2014 e hoje, a Turquia acolheu 4 milhões de Sírios e Iraquianos que fugiram da guerra que ocorreu nos seus respectivos países e o Líbano hospeda um número de refugiados desses países equivalente a um terço da sua população. No tocante à América Latina, o principal país de destino dos venezuelanos não é o Brasil, mas a Colômbia, com uma estimativa de 900.000 pessoas em situação regular, seguida pelo Peru e pelo Equador (250.000).

Vale destacar que os meios de comunicação nacional colocaram nos holofotes o novo fenômeno de migração dos venezuelanos no país e que existem na realidade algumas cidades situadas na fronteira, que encaram a situação sozinhas. Pacaraima, município com menos de 15.000 pessoas, enfrenta atualmente, além dos seus próprios problemas ligados à pobreza e à violência, o desafio de acolher em condições humanas, como prega a nova Lei de Migração adotada em 24 de maio de 2017, milhares de pessoas carentes de tudo e que atravessam a fronteira.

O estado do Norte do Brasil conhece cotidianamente problemas de tensões entre os habitantes das cidades que estão na linha de frente e os migrantes, além da ressurgência de doenças contagiosas, até então erradicadas no território brasileiro. Os últimos dados publicados em 2017 do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão ligado ao Ministério da Justiça, apontam que o número de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado pelos venezuelanos disparou, passando de quatro, em 2010, a 17.865 sete anos depois, representando a metade do número total das solicitações. Em 2017, duas Unidades Federativas concentraram a grande maioria das solicitações, Roraima e São Paulo, ou seja, respectivamente 15.955 correspondendo a 47% e 9.591 correspondendo a 28% do total das solicitações; a Bahia não é um pólo atrativo para os migrantes, pois registrou somente 65 solicitações. O CONARE reconheceu 587 refugiados ano passado, a maioria oriunda da Síria e da República Democrática do Congo, mas nenhum pedido dos venezuelanos foi acolhido por não terem conseguido comprovar o temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas no seu país de origem. Vários são os fatos que deixam pressagiar a continuação da onda de deslocamentos rumo ao Brasil. Os Estados vizinhos da Venezuela criaram entraves (como a exigência de passaporte, quase impossível de adquirir, por Bogotá, Quito e Lima) para frear a entrada de venezuelanos nos seus territórios; muitos economistas julgam insuficientes as medidas econômicas anunciadas em agosto por Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, para lutar contra a hiperinflação.

A intensificação do braço de ferro entre Caracas e os Estados Unidos, do presidente Donald Trump, impossibilita, pelo menos a curto prazo, a busca de uma solução à saída da crise. A pressão norte-americana sobre a OPEP para manter o preço do barril do petróleo baixo, principal fonte de recursos do país sul-americano, não torna tampouco otimista quanto à evolução da situação econômica do país. Segundo a ONU, 2,3 milhões de Venezuelanos – sobre um total de 32 milhões – já deixaram seu país desde 2015. Diante da amplitude e da aceleração nesses últimos meses do fenômeno –, a ONU anunciou a implantação de uma unidade de crise regional para resolver a situação migratória. Mas antes de achar a solução para voltar a uma situação econômica mais estável na Venezuela, a sociedade internacional e os países latino-americanos, em particular, devem oferecer respostas rápidas à questão migratória.

Qual vai ser a posição do Brasil? Assim como os Estados vizinhos, o país vai conter o fluxo migratório, alegando a proteção de sua soberania, ou vai aproveitar essa oportunidade para testar sua nova lei de Migração, que entrou em vigor em 21 de novembro do ano passado? Elaborada durante vários anos em conjunto com representações da sociedade civil e sancionada pelo Presidente Michel Temer, ela mudou radicalmente o paradigma do estrangeiro: esse diploma substituiu o Estatuto do Estrangeiro adotado em 1980 por uma ditadura obcecada pela segurança nacional que considerava o imigrante como uma pessoa potencialmente subversiva. Várias normas daquele regime se chocavam com a Constituição Federal cidadã de 1988. A Lei n° 13.445 de 2017, doravante pautada pelos direitos humanos, versa sobre os direitos e deveres do migrante. Ela contempla no artigo 3° princípios como a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, o repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e quaisquer formas de discriminação e acolhida humanitária. São garantidos ao migrante e a aos seus familiares, além das liberdades e direitos fundamentais, o acesso igualitário e livre a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social.

Este diploma respeita tanto a Carta magna de 1988, quanto as convenções internacionais de direitos humanos que foram assinadas e ratificadas pelo país, como a Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José). Mas, não basta adotar normas respeitosas dos direitos humanos: é preciso concretizá-las com a aplicação de políticas e programas adaptados. O governo brasileiro deve inovar para conseguir conciliar sua soberania – em outros termos, proteger sua integridade territorial e seus nacionais – e suas obrigações constitucionais e internacionais de respeitar os direitos humanos de todos, inclusive dos estrangeiros.

Fechar as fronteiras, como solicitou a governadora de Roraima, Suely Campos (PP), além de ser uma postura “inapropriada”, segundo as próprias palavras do Presidente brasileiro, é irrealista do ponto de vista pragmático. O exemplo dos latino-americanos na fronteira entre México e os Estados Unidos, que escalam muros e atravessam desertos, ilustra que nada impede uma pessoa voluntária (pois sua vida depende disso geralmente), a burlar os postos aduaneiros, mesmo protegidos pelo exército.

Para que o fenômeno migratório não se transforme em uma crise de solidariedade, como na União Europeia e nos Estados Unidos, o país, como maior potência da região, deve tomar providências logo agora para evitar cenas chocantes de violência contra os migrantes, pessoas por definição em situação de vulnerabilidade, como assistimos nessas últimas semanas. Os centros de atendimento ao migrante e unidades móveis devem ser ampliados em grande escala, em outras regiões do estado e outras unidades federativas. O processo de interiorização deve ser intensificado. A União precisa assumir a totalidade dos custos vinculados ao acolhimento dos venezuelanos (alojamento, alimentação e saúde em prioridade).

Em conclusão, essas próximas semanas serão importantes para avaliar a vontade das autoridades brasileiras de aplicar as normas que elas próprias adotaram. Desde os anos 2000, o ACNUR aplaudia o Brasil por cumprir honrosamente suas obrigações com os relativamente poucos refugiados políticos que recebia e por suas propostas de “reassentamento solidário” dos nacionais dos países vizinhos (na época, essencialmente os colombianos). Será que o Brasil terá a maturidade necessária para evitar os obstáculos e dar soluções simplistas a problemas complexos, para aproveitar da experiência negativa da União Europeia e não cair no impasse, para oferecer exemplos de soluções inovadoras e exemplares para o mundo ao conseguir de maneira concomitante proteger seus interesses econômicos e de segurança e respeitar suas obrigações morais e jurídicas de acolher seus irmãos em situação de grande aflição? É tudo que desejamos a nosso lindo país de adoção.

* Juliette Robichez, francesa e residente permanente no Brasil, fez toda sua formação acadêmica em direito na Universidade Paris 1 - Panthéon-Sorbonne: graduação (1990), Mestrado em Direito International Privado e Direito do Comércio Internacional (1991), Mestrado em Direito Privado (1992) e Doutorado em Direito (1999). É docente do Centro Universitário Jorge Amado e leciona nos cursos de Relações Internacionais e Direito.