'A escravidão é o assunto mais importante da história do Brasil', diz Laurentino Gomes

Escritor lança em Salvador, neste domingo (20) primeiro volume da trilogia Escravidão

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  • Ana Pereira

Publicado em 20 de outubro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

O rigor na pesquisa e o estilo narrativo envolvente do jornalista e escritor Laurentino Gomes conquistaram muitos leitores com a trilogia histórica 1808, 1822 e 1889. O conjunto de livros vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares, transformando-o num best seller e gerando muita expectativa sobre o novo projeto,  dedicado à escravidão. 

Idealizado novamente em forma de trilogia, o trabalho, que  consumiu seis anos de pesquisas e muitas viagens, só vai ser finalizado em 2021. O primeiro volume cobre um período de 250 anos, entre o primeiro leilão de cativos africanos registrado em Portugal, no dia 8 de agosto de 1444, até a morte de Zumbidos Palmares, em 20 de novembro de 1695. 

Esta segunda trilogia, afirma o autor em entrevista ao CORREIO, foi uma decorrência natural da primeira.  “A escravidão é o assunto mais importante da nossa história”, resume Laurentino,  que lança o trabalho neste domingo em  Salvador,  às 16h30, na Livraria Leitura do Shopping Bela Vista.

O segundo livro, que será lançado em 2020, vai se concentrar no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação do cultivo de cana-de-açúcar e putras culturas agrícolas.  "Num período de apenas cem anos, mais de 6 milhões de seres humanos foram traficados da África para as Américas, dos quais 2 milhões (um terço do total) só para o Brasil".

O terceiro e último livro, com lançamento previsto para 2021, se dedica ao movimento abolicionista, ao tráfico ilegal de cativos, ao fim da escravidão no século XIX e ao seu legado nos dias atuais. Entre outros temas, diz o escritor, vai tratar também nas sequências de temas como a família escrava, as alforrias, a escravidão urbana, as festas, irmandades e práticas religiosas, a assimilação, as fugas, rebeliões e os movimentos de resistência. Confira entrevista com Laurentino dobre Escravidão, que figura há oito semanas na lista dos mais vendidos do país.

Quando nasce a ideia de escrever esta trilogia sobre a escravidão e qual a expectativa que o senhor tem em relação à leitores e leituras sobre o trabalho?

Espero dar uma contribuição pessoal para o desafio brasileiro de encarar a sua própria história escravista e dela tirar lições que nos ajudem a construir o futuro. Tudo que já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas. Escrever sobre a escravidão foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Essas três datas – 1808, 1822 e 1889 – foram fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19 e ajudam a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas estuda-las não é o suficiente para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje. Ao fazer isso, eu me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de 12,5 milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra ou afrodescendente do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, na América pela Lei Áurea de 1888, quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje.Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da escravidão. No Benin, o escritor encontrou Marcelino Norberto de Souza, descendente do traficante de escravos baiano Francisco Félix de Souza (Foto: Divulgação) Logo na abertura do livro você afirma que o baiano Francisco Félix de Souza é um dos “personagens mais extraordinários da história do Brasil”. Poderia falar um pouco sobre ele e qual o verdadeiro peso de pessoas como Felix no grande negócio que foi o tráfico de pessoas escravizadas?

Eu trabalhei mais de trinta anos como repórter e editor de jornais e revistas. Aprendi que, no jornalismo, é importante entrevistar ou contar história de pessoas reais, em carne e osso, que ajude a ilustrar um determinado assunto ou pauta (como se diz no jargão das redações). Esses personagens têm o poder de aproximar a reportagem do leitor que a está lendo e que, muitas vezes, se identifica com eles. Isso funciona também num livro-reportagem sobre história do Brasil. Por isso, enquanto estou fazendo minhas pesquisas, eu fico muito atento aos personagens que ajudem a ilustrar as histórias que pretendo contar aos leitores. O chachá Francisco Félix de Souza é um caso exemplar na narrativa da escravidão. Nascido na Bahia, mestiço descendente de escravos africanos, ele mudou-se para a África no final do século XVIII, fez uma aliança com o rei do Daomé e se tornou um grande traficante de cativos para o Brasil. Teria embarcado mais de meio milhão de escravos para o Recôncavo Baiano. o que lhe rendeu uma considerável fortuna, estimada em algo em torno de 120 milhões de dólares, em valores de hoje, e grande prestígio político no continente africano. Ao morrer, em 1848 aos 94 anos, deixou 53 viúvas, mais de 80 filhos e 2 mil escravos. Seus descendentes estão hoje espalhados por diversos países e ocupam posições de grande poder e visibilidade em alguns deles.

O livro combina a pesquisa com um grande esforço de reportagem. Em que medida elas dialogam? Visitar a Serra da Barriga, em Alagoas, por exemplo, foi importante em que sentido para a narrativa?

Ao todo, foram seis anos de pesquisas, nos quais li quase duzentos livros sobre o tema e viajei por doze países em três continentes. Entre outros lugares, estive em Cartagena, na Colômbia, que foi o principal porto negreiro do antigo império colonial espanhol. Morei em Portugal durante seis meses. A partir dali fiz cinco viagens a oito diferentes países africanos: Cabo Verde, Senegal, Marrocos, Angola, Gana, Benim, Moçambique e África do Sul. Nessas viagens, fiquei muito impressionado com as semelhanças entre Brasil e África. Praia, capital de Cabo Verde, é uma mistura de Salvador e Rio de Janeiro. A presença da música brasileira está em todo lugar, especialmente a Bossa Nova, muito forte entre os compositores e intérpretes caboverdianos. Luanda, capital de Angola, lembra muito o Rio de Janeiro, incluindo as muitas favelas que compõem e periferia pobre da cidade. O biotipo das pessoas, o jeito de falar e se comportar lembra muito o jeito carioca. A mesma sensação se tem em relação a Bahia em países como Gana, Senegal e Benim, de onde, por sinal, vieram muitos cativos africanos para trabalhar nos engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano. No Benim, especialmente, muito me impressionou a quantidade de templos e símbolos ligados a prática do candomblé. A culinária também é muito parecida, marcada pelo uso de ingredientes como a pimenta malagueta, mandioca, feijão, quiabo, inhame e milho. Qualquer brasileiro que visita a África, pelo menos nessas regiões, vai sentir-se imediatamente em casa. Além disso, percorri o Brasil, visitando, entre outros lugares, quilombos no Estado da Paraíba, usinas e engenhos de cana-de-açúcar em Pernambuco e na Bahia, a Serra da Barriga, em Alagoas, onde morreu Zumbi dos Palmares, o Vale do Paraíba, em São Paulo, as antigas minas de ouro e diamantes em Minas Gerais e o Cais do Valongo, que foi o maior porto negreiro das Américas no século 19. Há muita informação visível ainda hoje nesses locais. Em resumo, fiz uma gigantesca reportagem jornalística, que agora estou transformando em três livros. Esse olhar jornalístico ajuda a aproximar a história do leitor de hoje. Laurentino no Cais do Valongo, no Rio, que foi o maior porto negreiro das Américas (Foto: divulgação) Como foi sua pesquisa na Bahia. E quais as principais descobertas feitas por aqui?

A Bahia, junto com Pernambuco, foi o berço da escravidão indígena e africana no Brasil. O uso da mão-de-obra cativa chegou junto com a cultura da cana de açúcar nos ricos e férteis solos de terra escura, repleta de sedimento orgânico, o chamado massapê, tão abundante no Recôncavo Baiano e na zona da mata pernambucana. Portanto, para estudar a escravidão no Brasil é preciso começar primeiro pela África. Depois, pela Bahia e por Pernambuco. Salvador, que hoje é a mais africana de todas as capitais brasileiras, foi o segundo maior destino do tráfico negreiro no Brasil, depois do Rio de Janeiro. A Bahia recebeu um total de 1,6 milhão cativos, sendo que a metade veio da Costa dos Escravos, entre o Benim e a Nigéria. A outra metade, de Angola. O número de mortos nas cargas humanas despachadas para Salvador foi de quase 200 mil. Ninguém sabe ao certo quando chegou a primeira carga de escravos africanos ao Brasil. Os documentos são imprecisos, mas há indicações de que seria ainda na primeira metade do século 16, ou seja, logo após a chegada de Cabral a Porto Seguro. Uma caravela encontrada por Martim Afonso de Sousa na Bahia, em 1531, estaria empregada no tráfico negreiro. O tráfico de escravos era um negócio gigantesco, que movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos dois lados do Atlântico. Incluía agentes na costa da África, exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores, atacadistas que revendiam no Rio para centenas de pequenos traficantes regionais, que, por sua vez, se encarregavam de redistribuir as mercadorias para as cidades, fazendas, minas do interior do país.As marcas dessa história ainda estão visíveis hoje na paisagem baiana. Não só na forma de dor e sofrimento, mas também na beleza e na diversidade que caracterizam a cultura afro-brasileira e que na Bahia a sua expressão mais poderosa.O primeiro volume termina com a morte de Zumbi dos Palmares. Por que escolheu este marco?

Decidi encerrar o primeiro volume da trilogia com a morte de Zumbi porque ali se completa também o primeiro ciclo da escravidão no Brasil, relacionada ao cultivo da cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro. Logo em seguida começa o segundo ciclo, relacionado à descoberta de ouro e diamantes em Minas Gerais. Além disso, Zumbi é o mais importante herói negro do Brasil. Mas, curiosamente, é um herói em permanente estado de construção e reconstrução. Personagens, datas e acontecimentos históricos são ferramentas de construção de identidade. Funcionam como âncoras lançadas no passado nas quais procuramos alicerçar valores, convicções, sonhos e aspirações do presente, enquanto preparamos a jornada rumo ao futuro. E, como todos os símbolos, geralmente são produtos mais de edificações imaginárias do que de fatos objetivos e comprovados – o que também os torna alvos de infindáveis investigações e discussões entre os pesquisadores. Palmares e o seu mártir Zumbi são bons exemplos disso. Quem teria sido Zumbi? Por mais óbvia que pareça, a pergunta carece de respostas consistentes. Em Palmares mito e realidade se misturam e se confundem, ao ponto de afetar a própria maneira como os brasileiros se identificam hoje, especialmente no que se refere à história da escravidão. Existem poucas informações concretas e objetivas sobre o suposto homem que liderou bravamente o maior e o mais famoso quilombo das Américas. Sua história permanece repleta de sombras, o que impediria que se tivesse uma visão mais nítida sobre ele. Na ausência de depoimentos pessoais ou documentos escritos por ele ou seus comandados, sobraria apenas o mito, lenta e laboriosamente construído ao longo dos séculos por historiadores, religiosos, militares, naturalistas, pedagogos, antropólogos, cineastas, arqueólogos, romancistas e, mais recentemente, militantes políticos. O resultado é a edificação de um Zumbi que, na verdade, nunca existiu. Está nos sonhos, na imaginação e nas convicções de cada pessoa e cada geração de brasileiros que sobre ele se debruçaram, na vã tentativa de desvendar-lhe o mistério. Estudar Zumbi, dessa forma, permitiria conhecer mais o Brasil e sua complicada relação com o passado escravagista do que o próprio personagem.

A expressão e o debate sobre lugar de fala ganharam força nos últimos anos no Brasil. E fala muito sobre o controle das narrativas? Como seu livro se coloca neste contexto?

Trato dessa questão logo na introdução do meu novo livro. Acho que, na história da escravidão, existem os olhares negros, os olhares brancos e os olhares atentos. Eu me esforço para ser parte deste terceiro grupo, mas caberá aos leitores julgarem se fui bem-sucedido nesse desafio. Também acredito que a riqueza da disciplina de História está na possibilidade de múltiplas narrativas, leituras e interpretações. O meu é um entre muitos outros possíveis olhares sobre o tema. Ao mesmo tempo, preciso reconhecer (e pedir a compreensão dos leitores) que minhas raízes e referências culturais de certa forma condicionam e limitam o meu olhar. Como repórter e pesquisador, posso e devo observar e ouvir os diferentes olhares e vozes, admitindo, porém, que seria indevido ou falso de minha parte tentar, por exemplo, expressar na sua totalidade a experiência de dor e sofrimento do “olhar negro”, pela qual nunca passei. Também acredito que a escravidão é, ou deveria ser, assunto com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. O Brasil foi construído com trabalho cativo, primeiro indígena depois africano.O legado da escravidão persiste entre nós ainda hoje, na forma de preconceito, exclusão social, ou, pior, de autonegação, que se o tema não existisse ou não merecesse ser estudado. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou senhores de escravos. Portanto, escrever sobre a escravidão e a história negra do Brasil é, para mim, uma responsabilidade da qual não posso nem devo fugir, sob pena de pecar pela emissão ou pelo autoengano.

Você fala que há um embate entre o 13 de Maio e do 20 de Novembro, que representariam posturas muito diferentes. Você diria que qual das duas representa mais o Brasil hoje?

Existe hoje uma guerra no calendário cívico nacional envolvendo essas duas datas importantes relacionadas à história da escravidão e seus protagonistas. De um lado, o Treze de Maio, dia da assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, em 1888. De outro, o Vinte de Novembro, da morte do herói dos Palmares, em 1695. Qual delas seria mais importante e digna da reverência dos brasileiros neste início de século 21? A polêmica é menos trivial do que se imagina. Nela estão diferentes visões a respeito da história da escravidão, seus acontecimentos e personagens e também o seu legado para as atuais e futuras gerações. Os defensores do Treze de Maio reverenciam a Princesa Isabel no papel que lhe foi atribuído no século 19 pelo jornalista e abolicionista negro José do Patrocínio: o de “Redentora” da liberdade dos cativos no Brasil. Os aliados de Zumbi e do Vinte de Novembro, ao contrário, acreditam que a Lei Áurea foi apenas um ato de fachada da elite agrária branca e escravocrata brasileira, que até então defendera com unhas e dentes o regime escravagista. Por essa visão, a luta dos escravos brasileiros estaria mais bem representada pelo herói de Palmares e data de seu sacrífico nas matas de Alagoas. É uma guerra que ainda está longe da acabar e só vai se resolver pelo estudo da história da escravidão e pela maneira como vamos encarar esses personagens e acontecimentos no futuro.

 Por que falas como as recentes declarações do técnico do Bahia, Roger Machado, sobre racismo estrutural e herança da escravidão ainda surpreendem tanto no Brasil?

A escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais e em declarações importante e corajosas, como a do técnico Roger Machado. Ele tocou numa ferida que continua aberta entre nós. E que ainda dói muito porque nunca foi devidamente tratada. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e indicadores sociais, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma das marcas terrível das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos, como, por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário do dia-a-dia se encarrega de desmentir isso. O que também explica a enorme reação à fala de Roger Machado. É um tema que incomoda muita gente, porque desmente os nossos mitos mais arraigados. FICHA

Livro: Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares

Autor: Laurentino Gomes

Editora: Globo Livros

Preço: R4 49,90 (480 páginas)