A esperança é verde-limão e tem vida louca e breve

por Rogério Menezes

Publicado em 8 de abril de 2018 às 08:44

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Era um dessas manhãs chicobuarquianas nas quais a gente se sente como quem partiu ou morreu. Na ponta do lápis, na linguagem fria das estatísticas pessoais, talvez essa sensação de ter partido ou morrido dobre a curva dos oitenta por cento das nossas manhãs tão bonitas manhãs. [De que adianta nos sentirmos assim, como quem tenhamos partido ou morrido? O importante é que: x) nosso coração sobrevoe e sobreviva  por + um dia; y) levantemos da cama; z) finjamos que a vida é carta de tarô: com a aparência de algum sentido].

Foi nesse ínterim entre o acordar e o não acordar, entre o fechado botão e a entreaberta rosa: avistei na parede branca que ladeia minha cama uma  esperança. Não aquela esperança substantiva abstrata que o vulgo diz ser a última a morrer – e sim o inseto ortóptero de cor verde da família dos tetigoniídeos (Neoconocephalus triops) - aquele que pode ser encontrado ao deus-dará em pastos úmidos,  e que vozes pragmáticas pouco chegadas a achados poéticos preferem chamar gafanhoto.

Penso em - à la Clarice Lispector no acachapante Paixão Segundo G.H. - comer a minha barata possível].

Entre a intenção e o gesto, entre o desejo de comê-la e o fato de, concretamente,  devorá-la, um entomólogo apaixonado pelos objetos de estudo com os quais lida pousa sobre a minha corcova – e mudo o rumo da prosa. Em vez de mastigá-la  por que não conviver com a esperança inda que por pouco tempo?

[Sigo até a sala. Volto,  munido de caderno e lápis, e passo a prospectar o inseto de maneira minuciosa. Anoto: ‘Pouco mais de 4 centímetros, possível  esperança adolescente’].

Coloco os óculos, e, num face a face algo insólito com a esperança, continuo a anotar: ‘Parece desorientada. Puxa uma das patinhas traseiras com dificuldade, como se estivesse com câimbras. [Lição de anatomia: ela tem 4 patas traseiras, 2 dianteiras, e 2 antenas nas laterais da cabeça.]’

Paro de fazer anotações e tento algum contato imediato  com a esperança. Em vão. Intuo: a esperança vive situação de estranhamento em habitat que não é o dela e, além do mais, abduzida pela cabeçorra de homem a lhe bafejar as fuças. Resolvo lhe dar, no sentido literal, sopro de vida: assopro-lhe o corpo magérrimo, mas não sai do lugar.

Desisto da esperança por um tempo: sigo para a cozinha fazer café e comer algo – isso talvez me impeça de devorar à la Lispector a esperança aturdida e vulnerável. [Ao voltar, percebo: a esperança se movimentou. Voou da parede  para uma das hélices do ventilador desligado].

Volto a tentar fazer contato. A esperança se finge de morta. Desisto. Vou pra rua caminhar, filosofar em sertanhão, resolver pendengas financeiras, provar que ainda estou vivo.

[Ao voltar não vejo mais a esperança. Vasculho o quarto e enfim a encontro: estropiada, conseguiu voar até um dos basculantes e tenta atravessar o vidro e voltar ao mundo lá fora. Não consegue. Escala o vidro e cai. Resolvo dar uma de deus: pego-a com delicadeza e a jogo no espaço vazio, à deriva].