A fase anal do jornalismo

Por Malu Fontes

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Publicado em 16 de julho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Se, com as plataformas digitais, o jornalismo vai morrer, não tenho a menor ideia. Mas o modo de se fazer jornalismo vigente até aqui, e que justifica o investimento de muita gente a gastar seu rico dinheirinho assinando um veículo informativo digital ou impresso, esse não só VAI MORRER, sim, como já está sendo arrastado para o túmulo, ainda semivivo, pelos próprios profissionais do jornalismo, os do presente e os do futuro, a carregar as alças do caixão. Em 2018, deve ser muito difícil para quem tem mais de 30 anos e que de fato acredita ou sabe que tem talento para narrar o mundo, ficar um dia atrás do outro praticando o jornalismo sentado. Vai-se cada vez menos às ruas, esse lugar onde a vida acontece, mas que parece soar cada vez mais perigoso ou sem graça para a maioria dos gênios jornalísticos do futuro.

Família safada A tarefa cotidiana mais em alta na rotina profissional da novíssima geração de profissionais de imprensa é grudar os olhos na tela nos stories ou nos feeds das celebridades de oitava e dar um control c + control v na última cusparada digital. Faz-se um registro disso no veículo para o qual se trabalha e entrega-se a obra-prima informativa para os leitores. E vamos combinar que boa parte destes estão satisfeitíssimos com essas pérolas, desde que elas venham de graça. E se for para pagar e ter algo melhorzinho, ah, então melhor não. Assim, deixemos a maioria da manada de leitores com a última escapada sexual da mocinha que é a maioria revelação da política local da última semana, com a treta da “família safada”, por causa de uma pensão, ou das roupas do guri devolvidas pelo motorista, ou com a nova macaca adotada pelo cantor que não canta, mas causa muito nas redes sociais. Para tudo isso, não faltam ampla cobertura, muito engajamento e milhões de likes e compartilhamentos.

Cargos públicos Há, no jornalismo, um fenômeno hoje chamado de deserto de notícias. Refere-se a lugares, no Brasil ou no mundo, onde a população não tem nenhum vínculo com jornais locais. No Brasil, 35% da população, cerca de 70 milhões de pessoas, segundo o Atlas da Notícia, vivem sem qualquer informação local. Isso equivale a 1.125 cidades sem sequer um veículo informativo para chamar de seu. E como ninguém é inocente, o deserto, na prática, é muito maior que esse. Afinal, quantos são os municípios em que as informações não são nada confiáveis, por reproduzirem somente aquilo que o poder político local quer, por ser ele que alimenta a imprensa, como passarinho aos filhotes incapazes no ninho, com verbas publicitárias tiradas dos cofres públicos? A coisa está muito feia para o leitor. Como se não bastasse a irrelevância das lacrações das celebs, o puxa-saquismo de profissionais diante de artistas e ocupantes de cargos públicos e os erros grotescos que os coleguinhas odeiam ver apontados, a maioria regurgitaria o café da manhã se soubesse da quantidade de apadrinhados que vivem nas redações escrevendo notícias e simultaneamente recebendo salários de cargos públicos, só por serem o que são: jornalistas estratégicos nas redações. Ah, venham dizer que quem tem um cargo público vai escrever uma reportagem que contrarie quem lhe paga um salário no final do mês...

Osso E quando não é nada disso a desestimular o coitado do leitor mais exigente, vem coisa ainda pior. Os jornalistas, ou porque não se importam ou porque não têm para onde correr senão ocupar-se do tema, são conduzidos a escrever sobre o mais urgente tema da vez: a fase anal da vida pós-cultural brasileira. Seja a analidade (e cada um que crie seu neologismo preferido) dos cachorros, a da mulher de Belo ou a da filha de Xuxa, o importante é escrever e postar sobre o assunto. Tá osso fazer jornalismo. E consumi-lo também. Há dias em que o melhor mesmo é se informar por memes, essa reserva da criatividade brasileira.