‘A fome te faz forte’, diz Elza Soares

Cantora fala sobre o novo álbum, Planeta Fome, que tem participação da BaianaSystem, Orkestra Rumpilezz e Virgínia Rodrigues

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  • Laura Fernades

Publicado em 21 de setembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marcos Hermes/Divulgação
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A cantora carioca Elza Soares, 89 anos, perdeu dois dos seis filhos por causa da fome e quando um terceiro estava sofrendo de desnutrição, foi atrás de um prêmio do programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso (1903-1964), na rádio Tupi. Sem roupa adequada, pegou o vestido da mãe que pesava 60kg e ajustou com alfinetes em seu corpo de apenas 32kg. Por causa disso, escutou do anfitrião: “De que planeta você veio?”.

“Planeta Fome” foi a resposta de Elza. Hoje, 66 anos depois, a cena volta à tona porque é assim que a artista batiza seu 34º disco, Planeta Fome (Deck), lançado há uma semana em todas as plataformas digitais. “A fome te faz resistir, te faz forte. A mim me fez muito forte. Lutei contra a fome a vida toda e hoje tenho muito mais fome. Hoje, tenho fome de saúde, respeito, dignidade, fome de professores bem remunerados”, justifica Elza.

Por isso, apenas sete meses depois do lançamento do disco Deus é Mulher, em maio de 2018, a cantora decidiu que queria saciar seu apetite com um novo álbum que falasse sobre o Brasil atual, seus problemas e perspectivas. “Eu não vou sucumbir”, diz logo na primeira música, Libertação, que foi composta pela BaianaSystem e tem participação dos também baianos Orkestra Rumpilezz e Virgínia Rodrigues.

Questionada por que escolheu o nome Libertação para a letra de Russo Passapusso, Elza não titubeia na resposta. “Eu não vou sucumbir nunca. E se não vou sucumbir, isso é libertação”, sorri a artista que também convidou o grupo baiano para o show de lançamento do disco, no Rock in Rio, dia 29. “A BaianaSystem é muito forte. Tudo o que eles fazem, eu gosto. Estou encantada”, elogia a cantora.

Além de “não sucumbir”, ao longo do disco produzido por Rafael Ramos, Elza questiona “Que país é esse?”; diz que precisa encontrar um lugar “onde a corrupção não é um hobby”; canta que “a placa de censura no meu rosto diz: ‘não recomendado à sociedade’”; se pergunta “onde essa porra vai parar”; garante que “a carne mais barata do mercado não está mais de graça”; canta o amor, pede “motivos para ir embora” e finaliza o disco perguntando “você tem fome de quê?”.

Retalhos Como uma colcha de retalhos, Planeta Fome costura participações e citações a músicas já conhecidas de Chico Buarque, Titãs, Seu Jorge, Caio Prado e Gonzaguinha (1945-1991). Blá Blá Blá, por exemplo, é cantada com o rapper BNegão e traz trechos de Chega (2016), de Gabriel O Pensador, DJ Memê e André Gomes, além de citar Me dê Motivo, sucesso de Tim Maia (1942-1998) composto por Michael Sullivan e Paulo Massadas, em 1983.

Tudo começou com Chega, no réveillon de 2018, quando Elza entregou um fone de ouvido ao diretor artístico de Planeta Fome, Pedro Loureiro, 39, e pediu que escutasse a letra. “Ela me disse: ‘Essa música conta um pouco do que sinto. Mas é uma parte da colcha de retalhos que gostaria de contar’”, lembra Pedro, que trabalha com Elza há cinco anos. “Chega!/Que mundo é esse? Eu me pergunto!/Chega! Quero sorrir, mudar de assunto!/Falar de coisa boa”, diz um trecho da canção.

“Essa música costura o processo criativo do disco todo”, reforça Pedro, que mergulhou em outras referências já existentes e buscou trechos inéditos para saciar a vontade de Elza de falar do Brasil. Compositor de Blá Blá Blá, Pedro conta que “a construção vem 100% de Elza”, que muitas vezes fala “quero uma coisa assim” e chega a fazer o som do baixo com a boca, por exemplo.

Apesar de ter escolhido os nomes dos discos Planeta Fome e Deus é Mulher, além do conceito do ensaio fotográfico, Pedro não colhe os louros. “A ideia é sempre da Elza. Eu só costuro”, reforça, sobre todo o trabalho do disco que tem capa feita pela cartunista Laerte Coutinho. “Elza gosta de contar com essas pessoas que, para a sociedade, são linchadas, são minoria. Pensar na Laerte também é um ato político”, afirma.

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Resistir Inquieta, Elza falou com Pedro anteontem sobre a ideia de um próximo disco. “Mas não tem nem uma semana que você lançou o último”, riu Pedro. “Nesse país como está, a gente tem que falar. Se a gente não falar, vem outro e fala de forma equivocada. E nossos netos e bisnetos? Preciso contar, em música, a minha resposta”, respondeu Elza.

Questionada se iria embora do Brasil, Elza não hesita. “Nunca. Já fui em um momento em que me mandaram embora, com meus filhos pequenos, para a Itália. Mas neste momento, não. Tem que resistir, meu amor”, justifica a cantora. “Nunca fui negativa, sempre fui muito positiva. Já passei por isso que está acontecendo no Brasil, então eu acredito. Agora, acreditar sozinha não tem jeito. Tem que acreditar todo mundo junto”, convida.

Segundo Elza, “o povo tem que se posicionar melhor, falar mais, porque o povo está dormindo”. “Que houve com esse povo dorminhoco, meu Deus? Não vão nos shows para falar palavrão, não: vão para a rua, requisitar na rua. É isso que funciona! Tem acordar todo mundo. Por favor, sem xingamentos. Vamos brigar pelo que temos direito”, convoca a diva.

Rafael Ramos, Pedro Loureiro, Elza, Pedro Luís e Rafael Mike nas gravações de Planeta Fome (Foto: Patricia Lino/Divulgação) Mocidade homenageia Elza Soares no Carnaval

No ano em que completa 90 anos (apesar de nunca revelar a idade, porque se considera “atemporal”), Elza Soares vai ganhar uma homenagem da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Com o tema Elza Deusa Soares, a Mocidade vai exaltar a trajetória da cantora carioca no Carnaval de 2020.

“Menina, fiquei muito emocionada, porque nasci em Padre Miguel e sou Padre Miguel doente, né? E o samba vem com uma força muito bonita, vem muito forte”, comemora Elza, em entrevista ao CORREIO. O samba-enredo sobre a cantora é assinado por Sandra de Sá, ao lado dos compositores DR Márcio, Igor Vianna, Jefferson Oliveira, Prof. Laranjo, Renan Diniz, Solano Santos e Telmo Augusto.

Uma das principais cantoras da música brasileira, Elza começou pobre, ganhou o mundo com sua voz, enfrentou preconceito, cirurgia na coluna, foi mãe adolescente, perdeu dois dos seis filhos, e enfrentou violência doméstica no casamento com Garrincha (1933-1983), um dos ídolos do futebol brasileiro.

Dona de uma extensa e respeitada carreira que ultrapassa seis décadas, Elza tem sido celebrada por diferentes gerações por seus inovadores últimos discos. Isso se deve, principalmente, ao álbum A Mulher do Fim do Mundo, lançado em 2015, o primeiro dela somente com canções inéditas.