A genealogia de uma culpa com desculpa

por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 6 de maio de 2018 às 07:38

- Atualizado há um ano

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 [Sala de UTI do Hospital São Vicente de Paula, Tijuca, Rio de Janeiro, segunda quinzena de outubro de 1988. Meu pai agoniza – em visão aterradora que jamais sairá da minha mente. No impacto com o pathos de fim de jogo do homem que me engendrou eclode culpa acachapante decorrente de delito cometido por mim em 1968. É preciso, é imperioso, que eu lhe conte o segredo – e eu conto – meu tempo acabara].

Segunda metade dos anos 1960: este garoto – já imerso no revolto mar tropicalista e saliente satélite dos Beatles e dos Rolling Stones – tinha rotina de trabalho. Saía da escola – onde era aluno aplicado a ponto de ser tachado de c.d.a.i. (cu de aço inoxidável), um ou dois graus acima do c.d.f. (cu de ferro), almoçava, e seguia para a Panificadora Estrela, no Mercado Municipal, 22, Jequié-Bahia, de propriedade de meu pai, Crispim Menezes. [À noite fazia o dever de casa]. Ia por ir, ninguém me obrigava, gostava do movimento, dos afazeres, de ajudar meu irmão, Zé Crispim, e meu pai na rotina de pesar e ensacar em volumes de 1 kg, 500 g e 250 g (meia libra) açúcar, sal, feijão, café, arroz, farinha de trigo et al. Também atendia clientes no balcão – era vendedor razoável.

Herança de meu pai, que nessa coisa de fazer ‘conta de cabeça’ era craque, também sou bom nisso. Resultado: fui ‘promovido’. Tinha 11 anos. Nas tardes de sexta-feira e aos sábados me designaram para cuidar do caixa. A bordo de máquina registradora de valores e de certa dinheirama que escorregava por minhas mãos, eu passei a me sentir o rei dos pequenos animais. [Meu irmão dizia, cheio de pressa: - Tiraí, Roge, 2.185 cruzeiros em 5.000 cruzeiros! Não titubeava. Num piscar d’olhos, Zé Crispim tinha o troco certo: 2.815 cruzeiros!].

Louco por cinema, literatura, revistas em quadrinhos e publicações jornalísticas desde o berçário (aprendi a ler manuseando o jornal A Tarde e teclando máquina de escrever Remington), caí em tentação. Sempre surrupiava alguns trocados no fim do dia. Nada vultoso.

[Confesso: usei dinheiro furtado ao  comprar a revista Realidade, que foi às bancas em maio de 1968. A capa, inesquecível e heroica: o repórter José Hamilton Ribeiro, em pleno calor da hora da guerra do Vietnã, expunha a perna dilacerada por mina destruidora.

[De volta ao hospital carioca, 1988: eu, 34 anos, já jornalista e escritor publicado, travo face a face dramático com meu pai moribundo. Conto-lhe, compungido: - Pai, naquele tempo em que trabalhei como caixa na ‘venda’, eu furtava um trocadinho para comprar revistas.  Meu pai, com fiapo de sorriso possível, cochicha: - Pensa que eu não via, ‘seu’ besta? Via tudo.

Arfante, o coração parecia querer sair-lhe pela boca a qualquer momento, meu pai disse: - Mas ‘num’ precisava pegar escondido, Roge. Quando ‘tu me pedia’ eu sempre dei, ‘num’ dei? Respondi ‘deu sim, painho, deu sim’, me esmaguei em prantos e gaguejei, engolindo torrente de lágrimas: - O senhor me perdoa, painho? [As últimas frases que ouvi de Crispim Menezes: - Perdoar o que, Roge? Eu ‘tou’ em tu!].