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Paulo Sales
Publicado em 24 de janeiro de 2022 às 05:05
- Atualizado há um ano
Se fosse possível preservar determinado período da sua vida para sempre, qual época você escolheria? Não importa se seria um dia, um ano ou uma década, qual você arrastaria rumo a uma improvável posteridade? Imagine que iria vivenciar indefinidamente esse período, repetindo ao infinito os mesmos sentimentos, as mesmas sensações de descoberta, harmonia e felicidade. Não haveria espaço para a saudade ou a nostalgia, afinal você estaria diante do melhor momento que viveu.
Meditava sobre isso outro dia na praia, enquanto observava adolescentes reunidos e um pai jogando bola com o filho. Pareciam, cada um ao seu modo, aproveitar plenamente aquele momento. Fiquei imaginando que época da vida eles escolheriam e qual eu mesmo escolheria. Prestes a completar 52 anos, já vivi bastante para discernir os instantes fugazes daqueles que permanecem. Os jovens na praia ainda não podem se dar a esse luxo.
Se me fosse dado escolher um ano, qual eu escolheria? Deixaria de lado, certamente, a infância e a adolescência, nas quais, introspectivo ao extremo, demorei a entender quem sou e do que sou feito. Ficaria então com os 20 anos, plenos de descobertas? Os 30, quando minha filha nasceu? Ou com a maturidade serena e perfeitamente degustada do pós-40, quando a minha vida se encheu de novos significados? Não sei, mas me inclino para essa última opção.
O cineasta japonês Hirokazu Kore-eda tem um filme que fala mais ou menos sobre esse tema. Chama-se Depois da Vida, e faz muito tempo que o assisti. É uma fábula meio inusitada, ambientada numa espécie de antessala do paraíso, para onde são encaminhadas as pessoas que acabam de morrer. Lá, elas contam com a ajuda de outros mortos, seus guias espirituais, para escolher uma única recordação que vai acompanhá-las por toda a eternidade – o resto será esquecido.
Fuço agora os arquivos mortos da memória – aqueles desvãos empoeirados onde se esconde a nossa essência – e me pergunto que reminiscência pegaria carona comigo até o éter. O calor da minha mãe me protegendo? O prazer da aventura ao sentir o vento gelado numa estrada? O delírio silencioso de um belo livro lido? O primeiro amor correspondido? A barriga estufada de minha mulher prenhe? O primeiro encontro com minha filha? O último encontro com meu pai?
Bem, creio que ficaria de bom grado com uma noite de lua cheia na praia, que passei com todos eles: meu pai, minha filha, minha mãe e minha mulher, em janeiro de 2003. Perfeita para ser levada até o outro lado do paraíso. Andamos pela areia, bebemos vinho, fizemos companhia uns aos outros. Uma noite singela e corriqueira, como qualquer outra, mas ao mesmo tempo única.
Guardar momentos como esse seria uma maneira de dar algum alento à finitude. De conceder alívio a questionamentos que nos fazemos desde quando a vida se torna um enigma. Indagações tolas, que deixam entrever a nossa perplexidade diante do nada. Como essa, pinçada do romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso: “Quem somos nós que assim passamos como espuma, e nada deixamos do que construímos, senão um punhado de cinza e de sombra?”
Mas será que toda a complexidade de uma vida poderia ser condensada em um único momento, por mais representativo que tenha sido? Não. O que faz dessa nossa aventura por aqui algo tão fascinante é justamente a sucessão inevitável das horas, que nocauteia sonhos e coleciona desilusões. Por outro lado, nos oferece o arrebatamento ensandecido das paixões, o desbravar das cidades desconhecidas ou mesmo o contentamento prosaico da contemplação. É quando nos damos conta de que estar vivo é uma dádiva imensa e preciosa.