A impressão da rosa

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 31 de outubro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Releu a mensagem repetidas vezes como se fosse a destinatária, mesmo sabendo que aquela dedicatória viera parar por acaso em suas mãos, entre as páginas amareladas de mais um livro de poemas achado no sebo. Bem mais barato que outros tantos que havia comprado, por conta da ausência da capa original.

O dono da loja a olhava de lado com indisfarçável desprezo, porque ela sempre comprava os seus piores exemplares usados. Os mais velhos, os desvalidos, os menos conservados, aqueles que ele fazia questão de esconder lá nos fundos da loja, quase implorando para que levassem embora por um valor mínimo.

Ela preferia justamente os desvalidos, aqueles que ficavam quase escondidos nos fundos da loja, largados numa espécie de cesto que seus amigos apelidaram de asilo. Era bem ali que os resgatava, pelos mais inacreditáveis preços, conferindo apenas se traziam dentro alguma dedicatória, algo desenhado ou escrito.

Costumava tomar para si cada dedicatória, emprestando novas histórias a personagens desconhecidos, presenteados com mundos imaginários que perdiam sentido ao mudar de mãos. Talvez procurasse algo específico, um recado perdido entre as dezenas de títulos descartados que encontraram novo lar em sua casa.

Doados, vendidos? Pouco se sabe. Inventava também seus registros, construindo novos percursos entre o abandono e o encontro. Este mesmo, por exemplo, teria vindo de uma cidade distante, que tanto podia ser Pasárgada ou Macondo. Pelas estradas, pelos ares, voava ainda, a sua capa, hoje liberta do miolo.

As frases escritas por antigos donos nem sempre traziam um recorte bonito da vida, esse enredo que se espalha em fluxo, fragmentado em milhares, em milhões, de corpos. Algumas sequer vinham inteiras e decifráveis. Mas é que ela também se interessava pelos fragmentos que despencavam dos frontispícios.

Feito um poema secreto guardado: “registro que um dia toquei seu coração”. Naquele livro, e então, despedaçado. De modo que já não se podia intuir o destinatário da única palavra legível, quer fosse amor ou rechaço. Muito menos quem ali deixou uma flor ressecada, tatuando entre as letras sua forma. O corpo da rosa imprimira uma outra, justo no trecho em que reconhecia como sua a dedicatória.