A infância que apedreja

Malu Fontes é jornalista

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Publicado em 18 de dezembro de 2017 às 02:54

- Atualizado há um ano

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Há uma semana, um episódio ocorrido em um bairro periférico de uma cidade do interior de São Paulo traduziu a cara que 2017 teve para o Brasil. A cara da exacerbação da violência e da regressão social. Um grupo de crianças de nove a 12 anos obrigou um Papai Noel voluntário que lhes distribuía doces a fugir sob pedradas, xingamentos e palavrões. As crianças que hostilizaram o homem com violência ficaram inconformadas porque os doces distribuídos não foram suficientes para todas as presentes na rua por onde o trenó passava. Aquelas que não receberam doces queriam vingança imediata com as próprias mãos. E começou a chuva de pedras.

A foto do Papai Noel apedrejado em Itatiba (SP), suado, aparentemente chorando com um lenço cobrindo o rosto, dá uma descrença sem tamanho no espírito de renovação ao qual tanta gente se refere nessa época do ano. Que adultos futuros poderão ser crianças, que, nessa idade, num misto de carência social e incapacidade de lidar com a falta, partem para apedrejar um homem que estava ali não por obrigação pessoal ou coletiva, mas para tentar fazer o clichê que todo mundo recomenda, o tal “faça sua parte”?

Hétero Na mesma semana, torcedores do Flamengo, no Rio, fizeram algo parecido. Não há dinheiro para comprar ingresso caro? Invadem à custa de toda a selvageria do mundo o estádio do Maracanã para ver o jogo sem pagar. A via para se obter o que se tem, tanto no caso das crianças apedrejadoras quanto no dos torcedores que invadem o estádio para não pagar o ingresso, é a mesma do ladrão. Se não tenho algo, tomo à força ou agrido, tento matar ou mato quem não me dá.

E como a falta de noção é o que norteia os posicionamentos das pessoas hoje sobre isso ou aquilo, eis que, diante da circulação da notícia sobre o episódio do Papai Noel paulista, um sujeito diagnostica o caso e explica as razões para o fato ter acontecido: "Papai Noel é um símbolo do capitalismo hétero normativo opressor. Só aparece pra agradar os ricos". Essas aspas estão lá, na matéria sobre o assunto feita por um dos grandes jornais de São Paulo.

Veneno Antes, o coitado do velhinho de vermelho era acusado somente de ser uma farsa a, em nome do capitalismo, enganar as pobres crianças inocentes. Agora é literalmente atacado pelas pobres crianças cuja inocência foi destruída e os adultos o acusam de ter sido cooptado pela turma hétero-normativa-branca-opressora. Oi?! Tudo, todos os temas do mundo, todos os fatos do mundo, ou pelo menos do nosso mundinho, precisam sempre, hoje, serem reduzidos a questões de gênero, cor e raça. Crianças de nove anos agredindo um Papai Noel numa rua da periferia significa alguma coisa, é claro. Mas o tipo de educação formal que elas estão tendo dificilmente lhes permitiria protestar contra o velho nórdico por conta da suposta opressão hétero-normativa que ele representa.

Na loucura de reduzir tudo a esse tema, atribuem ao fato um significado que ele não tem. Apelar para pedradas e mandar o Papai Noel tomar naquele lugar nada tem a ver com heteronormatividade, ampliem esse conceito o quanto ampliarem para forçá-lo a abarcar tudo. As crianças de Itatiba traduzem algo muito mais fácil de entender, embora muito mais trágico. O episódio traduz a infância brasileira sem repertório infantil e já mergulhada no pote de veneno da violência que a cerca por todos os lados. Cerca, inclusive, qualquer perspectiva de algum futuro fora ou longe dela. Para essas crianças, furar esse ciclo da violência dentro da qual vivem só com um milagre. Mas como acreditar em milagre se até mesmo uma fantasia boba, como um velho de vermelho distribuindo docinhos, torna-se risco de vida para quem a incorpora no meio da pobreza?