A milhas e milhas de qualquer lugar

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  • Paulo Sales

Publicado em 16 de novembro de 2020 às 05:11

- Atualizado há um ano

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Hoje eu tive insônia e a madrugada foi de relâmpagos e trovões explodindo sobre o mar de São Luís. Um espetáculo bonito, mas assustador. Uma insônia renitente, dessas que nos lançam contra nossos piores temores: a certeza da finitude, o envelhecimento, o medo do sofrimento. Estou perto do mar, mas não é o meu mar. Estou longe da minha casa e da minha família há dois meses, a trabalho. E a ausência do afeto diário se assemelha à carência de uma vitamina no sangue, traduzida em certa irritabilidade e exaustão persistente.

Enquanto a chuva trazida pelos relâmpagos e trovões espancava a janela do meu quarto de hotel, pensei preocupado na mãe pomba e nos seus dois filhotes, que estão abrigados num vão externo próximo à minha janela. Nutro carinho por eles, desde que vi pela primeira vez os dois pequenos ovos dispostos num ninho feito de galhos secos. Hoje, como todos os dias, dei uma espiada nos três para ver se estava tudo bem. A mãe sempre me olha desconfiada, embora talvez já tenha se acostumado com a minha presença esporádica. São minha família aqui.

Não é agradável sentir-se só. Leio pouco e não assisto a filmes. Às vezes, bebo um vinho no quarto e ouço música para relaxar do dia intenso de trabalho. Ontem, um tinto espanhol ordinário e o sax de Charlie Parker me fizeram companhia. Bird quase sempre contando com o auxílio luxuoso de Dizzy Gillespie no trompete. Os homens que inventaram o bebop e subverteram o jazz, influenciando os gênios surgidos na sequência: Miles, Coltrane, Monk, que também contribuíram – em maior ou menor medida – com a gênese do movimento.

Vem à minha mente uma canção de Caetano: “Noite de hotel /Estou a zero, sempre o grande otário /E nunca o ato mero de compor uma canção /Pra mim foi tão desesperadamente necessário”. Não sei compor, não aprendi a tocar, não possuo o talento do mestre santoamarense. Fico restrito a poeminhas pouco inspirados ou crônicas sem pé nem cabeça como esta, concebida em mais um momento de solidão. Relembro o passado, vislumbro o futuro. E tento fazer com que o presente se torne menos enfadonho. Nas ligações de vídeo, rostos que me sorriem por um momento pulverizam quilômetros e preenchem o oco do claustro vazio e do silêncio em que me encerro.

Contemplo a rua vazia na noite alta. O asfalto molhado pela tempestade. As ondas que lambem a areia. Vejo o meu reflexo na janela: a barba crescida, os cabelos grisalhos, o olhar cansado. Em nada lembro o rapaz que adorava viajar sozinho e passava horas infinitas na estrada, que via em cada cidade desconhecida a possibilidade de uma descoberta, uma aventura, um horizonte por desbravar. Hoje, como diria Humberto Gessinger, sou uma ilha, a milhas e milhas de qualquer lugar. Hoje, sou um daqueles tipos solitários dos quadros de Edward Hopper, entrevistos numa janela ou sacada. Sem rosto, sem sentimentos, aprisionado num deserto existencial.