A platitude do silêncio, ou o raio cai duas vezes na mesma mulher

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

Publicado em 26 de agosto de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Ao acordar de sono pesado, Vivi Novak, 85, pele alva feito leite e longínqua ascendência tcheca, olha para relógio que não mais desperta e que avisa, sem clemência alguma: já passa das onze da manhã. Olha para o teto, infestado de manchas úmidas e mofadas que remetem a mapa-mundi esmaecido e oxidado. Olha para o corpo flácido e magro, e sente náusea, ‘aquela velha e má companheira’. Olha, cheia de preguiça, para o copo cheio d´água até a borda onde descansa dentadura que usa há décadas.

Nada a surpreende nessa encardida paisagem  – a não ser pequeno objeto metálico que, cálido e sossegado, jaz no fundo de copo de vidro, que, num primeiro momento, Vivi Novak não chega a perceber, mas, depois que o percebe, age como se aquela bala meio enrugada pela trajetória que enfrentara a mil por hora estivesse ali desde sempre.

Vivi é surda, digamos, por convicção. É assim desde que optou por não ouvir mais as frases horrendas que o filho único – morto a facadas nas cercanias da Lapa, no Rio de Janeiro, em 1999 – lhe enfiava nas fuças. Como se obedecesse a comando supremo e inexorável, o canal auditivo de Vivi foi se atrofiando até inexistir de vez – ‘paulatinamente’ como escreveu em velho caderno espiralado que guarda no criado-mudo.

[Mora sozinha em pequeno apartamento ao lado do Sambódromo, mergulhada no mundo  encantado do silêncio absoluto. Nesse mesmo caderno espiralado, que chegou às mãos deste narrador em circunstâncias que não se quer revelar – todos temos o direito de guardar nossos segredos, – escreveu: ‘O dia em que percebi que não escutava mais nada, absolutamente nada, me senti a mais feliz das criaturas. Não ouvir mais o barulho dos tiroteios das favelas próximas, os latidos noturnos dos cães, e a música horrenda das escolas de samba não tem preço’].

Ainda meio desmemoriada nesse acordar de sono pesado, Vivi luta, como faz todos os dias, com valentia, contra a lei da gravidade que parece grudá-la na cama para todo o sempre. Tenta uma primeira vez, uma segunda, e, vencida, desaba outra vez sobre o lençol molhado de suor.

Enfim, em terceira tentativa, consegue sentar-se, esticar o braço, pegar a dentadura no copo d´água e enfiá-la na bocarra malcheirosa. Olha para a bala que jaz no fundo do copo d´água com desdém, e decide fazer xixi e tomar xícara grande de café preto antes de qualquer coisa.

Arrasta os chinelos no chão em cantochão cadenciado e arrastado. Faz xixi. Lava mãos e rosto. Bebe resto de café preto e frio que ordenha de velha garrafa térmica, e volta para o quarto. Pega o copo com água, joga com desleixo a água no chão do quarto sujo e retira com a mão magra a bala que jaz no fundo do copo. Olha o pequeno objeto de metal com repulsa e o atira com a pouca força que lhe é peculiar pelo basculante que dá para a rua.

Vivi Novak sente algo lhe penetrando na nuca, seguido de dor profunda e + rio de sangue que lhe desce pelo pescoço. Então capta o instante que ora lhe devora. A segunda bala, menos perdida que a anterior, encontra o alvo. [Bingo!]