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Da Redação
Publicado em 14 de julho de 2019 às 06:00
- Atualizado há um ano
O aviãozinho vai, o aviãozinho vem – e eu canto baixinho, joãozinho e desafinado – e eu estou sentado em cadeira de salão de embarque do aeroporto dessa Salvadores – e eu procuro algum ponto de fuga. Ao redor gentes robóticas ziguezagueiam – e puxam malas com rodinhas como se malas com rodinhas lhes fossem extensão dos braços – e concentram olhares em telas de celulares como se celulares lhes fossem extensão dos globos oculares. [Deixei de comprar jornais e revistas. Não carregava nenhum livro que me permitisse transcender. Perdera o meu celular em caminhada feita no começo da tarde, entre o Largo de Nazaré e o bairro do Chame-Chame. Só me restava observar].
Precisava descobrir algo ou alguém que me abduzisse no meio daquela multidão robótica. Então ‘milagre’ se opera. Entra em (minha) cena velha senhora, presumíveis 80 + alguns anos, a bordo de trajes muuuuito cafonas (como se dizia outrora) e postura bamboleante (como se fosse desabar a qualquer momento). Essa aparição me faz decidir: é nessa velha senhora que vou me deixar obcecar.
[Alta e corpulenta, carrega bunda barroca que balança, balança, mas não cai. Talvez tenha sido aquela ‘mulata bossa nova’ da marchinha carnavalesca d’antanho em versão ‘estendida’. Os cabelos cacheados são vermelhos, ou roxos, a depender do ângulo. Cobre-lhe os olhos óculos escuros de dimensões continentais. Realça-lhe a bocarra batom carmim. Usa calça de malha preta e chinelinhos rasteiros, o que me faz crer que saíra de casa e se esquecera de colocar sapatos. Sobre essa base nada minimalista, mantô com estampa de oncinha que lhe vai até o meio da canela. Aperta-lhe a cintura faixa de pano preto com talvez 1 palmo de largura. Carrega 2 sacolas, uma vermelha, outra roxa, ambas com o emblema da ‘Chanel’ – mas talvez compradas na Baixa dos Sapateiros].
Como se não bastasse, deus-ex-machina sacana rasgou-lhe pedaço do mantô com estampa de oncinha na altura dos glúteos – e ela não percebeu – ou não quis perceber – ou foi ela mesma que rasgou – o que a transformava em personagem com dimensões surreais. Caminhava de lá e pra cá, de maneira compulsiva, e de tempos em tempos, parava em frente às telas que exibiam os horários de partida dos voos, concentrava o olhar, e voltava ao ponto de onde saíra.
De repente, o inesperado me faz uma surpresa. Essa mulher surreal senta-se ao meu lado. Recende a aromas almiscarados que quase me provocam enjoos. De repente, o inesperado me faz outra surpresa: ela abre uma das bolsas ‘Chanel’ e de lá arranca volume envolvido em guardanapo branco. O objeto oculto emerge e vejo tangerina GG, de tamanho que nunca vira. Ela rompe a casca da fruta, e, sem pressa, devora os gomos gigantes da tangerina gigante. [Minhas fossas nasais quase colapsaram, bombardeadas por cheiros tão díspares].
Jantar devorado, a velha senhora guardou as sobras em uma das bolsas, levantou-se e partiu. Para nunca mais voltar. Durante os 40 minutos em que eu permaneci no local, antes de voar para este Rio de Janeiro, não surgiu mais em (minha) cena.